Fábio Muniz: “Deixa o trem passar, eu, as minhas filhas e Auschwitz”

Bom dia meus queridos amigos.

Você já ouviu este conselho? “O trem vai passar e pode ser que não volta mais…”

Eu já ouvi. Você também. Certamente, centenas de vezes…

Este conselho é dado para gente que quer seguir um programa de trainee em uma multinacional. Este conselho é dado para alguém que quer passar pela tal “peneira de futebol”. Este conselho é dado quando alguém fica cara a cara com um empresário de muita grana. Este conselho é dado quando alguém participa de uma entrevista de trabalho.

Ora, eu cresci no mundo dos negócios, fazendo vendas e marketing, buscando novos clientes e tendo que reter as contas mais lucrativas. Havia uma “amizade relativa” entre os colegas de equipe. Digo “relativa” porque neste meio “selvagem” do mundo business até as amizades se relativizam quando o assunto é buscar as oportunidades.

De modo que caímos desapercebidamente no “Vale Tudo”. Cada um vira “Minotauro”, “Anderson Silva”, e salve-se quem puder. Eu sei que você sabe do que estou falando…

Pois bem, os “trens” podem ser boas oportunidades. Eu não sou contra eles. Eu já peguei muitos. Certamente, por muitas outras “estações ainda vou passar”. Mas, jamais a qualquer custo…

Até porque para muitos (e digo isto com muita tristeza) os fins justificam os meios e para chegar ao destino final, vale qualquer “trem” ainda que tenha que passar por cima de tudo e de todos, sem escrúpulos e sem nenhuma ética.

Até porque é fácil discernir o “trem” que vem com cara de “vale tudo a qualquer custo”. Difícil é decidir entre a boa causa e a família. Difícil é decidir entre um projeto nobre e passar um pouco mais de tempo com a filha, ou com os pais que já estão idosos ou mesmo ir jantar fora com a esposa.

Isto dito, já que o momento é de reflexão nesta coluna, deixa eu te perguntar…

O que você fez neste fim de semana? Não me diga que você gastou a maior parte do teu tempo no Facebook, no YouTube, ou no Netflix vendo seriados. Não me diga que você passou uma boa parte do teu sábado no WhatsApp, Instagram ou qualquer outro aplicativo.

Você já se pegou na mesa com todo mundo enviando e recebendo mensagens e ninguém conversando com ninguém?

Acho que isto só acontece comigo:-)

A segunda-feira começa. O corre-corre chegou. Você já checou o teu e-mail ou agenda para ver se consegue conciliar todas as tuas atividades? Você conseguiu levar as crianças para a escola? Tomou café antes de sair de casa ou vai tomar quando chegar no escritório? Como estava o ônibus ou o metro nesta manhã? Estavam lotados? Pegou a Marginal Tietê ou a Radial Leste de São Paulo dentro de um engarrafamento insuportável?

De fato, a vida impõe um ritmo e faz com que a gente corra atrás dela sem parar, “pra lá e pra cá”, dentro de um frenesi inimaginável que parece mais uma roda de hamster. A sensação é que corremos e parece que não saímos do lugar.

Você já teve esta sensação antes? Eu gostaria de falar com você caso você esteja tendo esta sensação agora mesmo. Às vezes eu tenho esta mesma sensação. Aliás, o primeiro susto que tomei com este “mundo paralelo” que me tira do presente para estar presente. Vou repetir. Nos tira do presente momento e nos faz ausentes, ou seja, a nossa mente viaja para todos os lugares, e a última coisa que acontece é estar presente para aqueles que estão bem do nosso lado e vivem debaixo do mesmo teto….

Foi quando eu morava na Flórida há uns 6 anos atrás. Eu e a minha esposa convidamos umas 4 jovens para almoçar conosco. Elas eram brasileiras e visitavam Orlando. Elas todas estavam sentadas no sofá da nossa sala quando eu percebi que começaram a conversar entre elas mesmas usando o telefone celular. Eu tomei um susto! Foi só o primeiro de muitos outros sustos que viriam. Gente do lado uma da outra e conversando pelo telefone?!

Eu vejo toda hora pais que não desligam o celular e perdem a oportunidade de brincar com as suas filhas. Eu vejo toda hora, maridos e esposas jantando em silêncio e cada um respondendo e-mails no celular. Eu vejo toda hora famílias que se reúnem na sala, o filme está passando, mas cada um está vivendo “o seu próprio mundo paralelo virtual” sem perceber que ninguém está assistindo o filme.

Ora, eu escrevendo estes parágrafos me dá saudades de um tempo que não está muito distante. No entanto, um tempo que as minhas filhas jamais saberão que existiu, pois eu ligava o radinho de pilha, nos reuníamos em grupo e ouvíamos o jogo de futebol. No mínimo, todos estavam literalmente antenados na partida, não existia distração e vivíamos uma experiência de comunidade e amizade singela. Nada de “networking”.

Amizade? Quantos amigos você tem? Quantos amigos eu tenho?

Espera aí! Deixa eu pensar um pouquinho…

Deixa eu olhar no meu Facebook. Hoje eu tenho 2129 amigos! 🙂 Quantos “likes” eu recebi no meu último post na coluna do Andreoli? 🙂

De fato, a Internet sutilmente virou a oportunidade de montar um grande palco, com tapetes vermelhos tipo Festival de Cannes e holofotes “hollywoodianos” onde o protagonista é você e sou eu!

Eu me sirvo dela. Não há nada de ruim. Eu uso WhatsApp para se comunicar com o mundo inteiro. Neste momento, estamos numa plataforma maravilhosa. O fato é que temos sido sequestrados. Nos tornamos reféns das redes sociais e do mundo virtual. O fato é que quando nos damos conta já fomos catapultados para um “mundo paralelo” e deixamos de viver a vida real.

Em uma das suas últimas entrevistas antes de falecer, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que trouxe o conceito da sociedade pós-moderna ou sociedade líquida, foi perguntado sobre este mundo Facebookiano e quantos amigos ele tinha.

Bauman sabiamente disse que tinha 86 anos de idade e não tinha os “500 amigos” que parecia todo mundo ter no Facebook.

Pois bem, fique comigo mais 2 minutos. Eu comecei dizendo que sempre foi fácil discernir uma proposta que não tinha a ver com valores éticos no mundo business. Na minha jornada, foi fácil deixar o “trem” passar quando os valores não condiziam com a integridade e a verdade. Hoje os meus “trens” são de outra natureza, pois eles vêm vestidos de projetos sociais, ajuda humanitária, coisas maravilhosas e causas verdadeiramente nobres que envolvem gente muito séria e generosa. No entanto, estes são os trens mais difíceis que eu tenho que deixar passar por algo que vale mais a pena. E o que poderia valer mais a pena do que estas causas e projetos nobres?

Talvez você ainda me pergunte, “Porque você esta dizendo isto, Fábio?”

Veja bem. Eu e a minha esposa temos duas filhas pequenas e nós dois passamos a maior parte do nosso tempo trabalhando em casa. Neste momento de pandemia, às vezes entro 5 vezes no Zoom no mesmo dia. É insano!!

Às vezes são reuniões com o objetivo de ajudar alguém, ouvir muita gente, animar pessoas que estão precisando de um apoio emocional e psicológico no meio desta crise econômica-sanitária-existencial sem precedentes. No entanto, a primeira vez que a minha filhinha de 3 anos veio do meu lado, fechou o computador e disse, “Vamos brincar, papai?!” Eu percebi que o desafio do século XXI tem a ver com o papel de ser um bom pai, um marido presente, um amigo que está pronto para escutar o outro amigo, e sobretudo, combinar todos os papéis na existência sem prejudicar o relacionamento daqueles que estão diretamente ligados com você. Aliás, faço ecoar as palavras de Jesus que disse, “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Eu diria hoje, “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, aplausos, “likes”, vizualizações e perder a alma da sua filha, o respeito do seus filhos, a amizade da sua esposa?”

Se você me perguntar, “O que você fez ontem, Fábio?”

Pois bem, era domingo de manhã. Eu peguei um livro para estudar e desenvolver alguns seminários sobre famílias híbridas e como criar os filhos dentro de um ambiente multicultural. No entanto, fui surpreendido pelas minhas duas filhas.

Eu pensei que poderia finalmente passar o meu domingo calmo, sereno e tranquilo, lendo um bom livro e trabalhando sossegadamente. No entanto, “eu deixei este trem passar”. Acabamos eu e as minhas duas filhas sentados no chão, deixamos a casa uma “bagunça” e pintamos para cada bonequinho uma flor.

Estar presente é o convite que eu deixo a cada um de vocês nesta segunda-feira.

Olha só. Eu já estou terminando. Quando eu visitei o campo de concentração Auschwitz na Polônia eu ainda morava em Barcelona. A partir daquela experiência eu nunca mais fui o mesmo. O passado e o futuro me levaram para o presente. Eu me lembro como se fosse hoje, eu fechei os olhos, no meio daquele campo enorme com milhares de cenas, vozes, depoimentos de sobreviventes, esperanças e anseios de gente que gostaria de ter vivido um pouquinho mais: um pouquinho mais para mais um abraço, um pouquinho mais para um último encontro, um pouquinho mais para ouvir o coração bater…

Isto posto, ainda que você esteja no começo da semana, parecendo estar dentro de um carro de Fórmula 1, saiba que “deixar o trem passar” faz parte de uma escolha que prioriza gente e não negócios, faz parte de uma escolha que prioriza o que é eterno e não o efêmero e passageiro, faz parte de uma escolha que prioriza o presente e a vida real, não o futuro e tampouco o virtual.

Deixo com você  as palavras de Viktor Frankl que fora um dos sobreviventes de Auschwitz: “Quando não podemos mais mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos.”

No período que passei na Espanha tive a oportunidade de visitar quase todos os museus europeus relacionados ao holocausto e a segunda guerra mundial. Nada foi tão chocante quanto a experiência de estar em Auschwitz.

 

Um beijo grande a todos vocês e até a próxima!

Fábio Muniz

Lyon, França

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Imagem 01, 02 e 03 : Freepik

Imagens 04 e 05: Arquivo pessoal do colunista

 

8 respostas

  1. Fábio como sempre inspirador. Que belo texto. Temos que nos voltar para o que realmente importa. Amigos do Facebook não são reais. Vamos dar mais valor à vida, a família e aos amigos verdadeiros (poucos). ???

  2. Além da saudade Fábio e sua esposa são muito queridos e poder ouvir um pouco do dom que Deus o abençoou e palavra boa que nos fala ao coração então vamos aproveitar suas menssagem e e nos edificar para onde e gloria do Senhor ??

  3. Excelente palavra! Que Deus continue abençoando a sua vida e o inspirando com palavras edificantes como esta, que possam tranformar a vida das pessoas.

  4. Muito importante essa reflexão,eu normalmente não fico com celular porque não enxergo bem, no meu caso não é uma escolha, mas quase uma incapacidade, eu faço mais força pra olhar no celular, do que não olhar, por isso na hora do almoço, normalmente sou o único na mesa que não olha o telefone.
    Mas temos que pensar nas escolhas, escolher em quais trens subir.
    Abraço,
    Elton

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