Próximo da Fronteira com a Rússia: Uma reflexão sobre a religião e a guerra

– “Fábio, você não está com medo?” Um amigo me pergunta via WhatsApp.

– “Não estou com medo, mas estou muito triste. Estou muito próximo da fronteira com a Rússia. São menos de 3 horas de carro.” Eu lhe respondo olhando para a estrada e lendo uma placa que me dizia quantos quilômetros de distância estávamos de Saint Petersburg.

– “Fábio, se você for até a fronteira, você vai sentir a tensão do outro lado. Você tem algum plano para fugir se algo acontecer na Estônia?” O meu amigo insiste em uma sequência de perguntas.

– “Fique tranquilo. Não acredito que a Rússia possa atacar a Estônia, pois ela faz parte da OTAN. Seria um erro brutal de estratégia”.

Memorial das Vítimas do Regime Comunista, Tallinn

Bom dia meus amigos queridos,

Eu estou com quase 50 acompanhares espirituais de toda a Europa em um encontro de muita fraternidade e leveza espiritual. Estes meus irmãozinhos e irmãzinhas vêm de diferentes tradições. Alguns são católicos, outros são protestantes, algumas são freiras, outros são padres e pastores anglicanos, alguns trabalham com a espiritualidade celta no Reino Unido, e há muitos luteranos.

Eu tenho aprendido muito com a história da Estônia. É uma história cheia de guerra e muita dor. O fato é que em cada uma destas guerras, carregava uma camuflagem vestida de “causa religiosa”.

Katrin Laur: escritora, historiadora e produtora de filmes nos conta sobre as vítimas do regime comunista.

De modo que um livro poderia ser escrito de tudo o que eu ouvi nesta semana. Um professor da história da igreja, e outros líderes religiosos locais nos trouxeram um quadro muito preciso destes diversos períodos da história. E mais ainda, a conhecidíssima Katrin Laur, escritora, produtora de filmes e historiadora, nos levou ao Memorial das Vítimas do Regime Comunista. Todos estavam chocados. Todos estavam assustados. Todos pensavam a mesma coisa. Faz pouquíssimo tempo que tudo isto aconteceu, e a história se repete na vizinha Ucrânia.

Pois bem, para fazer uma síntese de todas as sínteses, o Cristianismo entrou na Estônia através de uma série de conflitos bélicos entre suecos, dinamarqueses, alemães, e sobretudo, influências do papado de Roma no século XIII. Entre espadas e uma “evangelização forçada”, a Estonia se rendeu ao Catolicismo. No entanto, esta “conversão” durou pouco tempo, pois a reforma protestante na Alemanha, fez com que a Estônia se rendesse ao Luteranismo no século XVI.

A história de guerras não cessa.

A bola da vez será o Império Russo e a força da Igreja Ortodoxa.

De modo que a partir do século XVIII o Império Russo começa a controlar o país. Ainda se nota a influência russa, pois as catedrais ortodoxas, os ícones russos e religiosos estão por todos os lados na linda capital Tallinn. Os ecos de um Império Russo que se iniciou no século XVIII ainda está muito vivo no inconsciente coletivo da nação.

Não há guerra santa.

Dentro de uma guerra todos perdem. Ninguém ganha.

Dentro de uma guerra, os que mais sofrem são as mães que se tornam mães solteiras, são os filhos que se tornam órfãos, são os mais velhos que não sobrevivem ao ver os seus filhos morrerem no campo de batalha, são os mais frágeis e vulneráveis que passam fome enquanto aqueles que mandam matar permanecem nos seus palácios confortáveis e nos seus banquetes que não faltam vinho e prazer.

A Estônia se tornou uma nação em 1917, mas ainda estava sobre a sombra e a tutela forçada do Império Russo que sempre teve como guarda-chuva a religião ortodoxa, pois foi a religião ortodoxa que sempre validou a ação opressora e colonizadora dos vizinhos russos.

E você talvez me pergunta, “Fábio quando este drama acabou e quando a Estônia se tornou um país independente?”

Finalmente, no dia 23 de Fevereiro de 1918 a independência surgiu entre muitas lágrimas e emoção, depois de estarem sendo dominados por séculos por várias forças estrangeiras. Todavia, esta liberdade e vontade de começar uma nação independente durou muito pouco, pois em Julho de 1949, a Estonia caiu nas mãos de Stalin, e a União Soviética anexou todo o país que se tornou parte do seu regime.

Prédio da KGB em Tallinn durante o período da ocupação russa.

De modo que uma repressão horrorosa tomou conta da população. A tão conhecida KBG se instalou em Tallinn. Gente executada. Gente deportada. Muita tortura. Muita dor.

Pois bem, foi tão somente no dia 20 de Agosto de 1991, que a Estônia conseguiu celebrar o Dia da Restauração da Independência e estabelecer um novo governo.

Eu ouvi inúmeros depoimentos sobre a guerra na Ucrânia e como a Estônia se tornou um dos principais países que recebeu refugiados.

O mesmo local onde nos reunimos com os acompanhadores espirituais europeus, é o mesmo local onde centenas de famílias vieram e encontraram abrigo, comida, e cuidado. O fato é que todos na Estônia ouvem a Russia dizer que Putin está trazendo os valores da familia, e valores cristãos de volta aos ucranianos, pois a corrupção de Zelenskyy chegou no ponto máximo e insuportável. Esta é a propaganda que “se vende”. Aliás, o aval da igreja ortodoxa russa é questionado por milhares na Estônia, e por diversas lideranças de outras denominações locais. Mas a guerra não cessa.

Nada novo.

Ruínas do Monastério de Pirita (1407-1607)

A guerra e a religião tem o seu arquétipo quando eu olho para as ruínas do monastério de Pirita, muito próximo da capital Tallinn. É triste ver que o monastério foi fundado por católicos em 1407, mas com a reforma na Alemanha, a partir dos anos 1524-1525, o local se tornou protestante. Mais guerras.

No dia 1 de Fevereiro de 1577, as tropas russas invadiram Tallinn e destruíram completamente o monastério restando apenas as ruínas que temos hoje.

Memorial das Vítimas do Regime Comunista, Tallinn

Mais guerras.

A guerra e a religião parecem ser ingredientes de um arquétipo que se espalha na história humana. Eu espero de todo o meu coração que eu e você possamos ser agentes da paz, construir pontes nos nossos contextos, e no mínimo entender, que a morte de crianças inocentes, a guerra cruel, e a loucura humana nada tem a ver com um Deus que se vestiu de amor, misericórdia, e tem sido crido por católicos, protestantes, ortodoxos; e disse: “Eu sou o príncipe da paz!”

Até a próxima!

Tallinn

 

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Imagens 01 e 05: Ruínas do Monastério de Pirita

Imagens 02 e 06: Memorial das Vítimas do Regime Comunista, Tallinn

Imagem 03: Katrin Laur

Imagens 04: Prédio da KGB em Tallinn durante o período da ocupação russa

2 respostas

  1. Se pararmos um instante para observar o que está acontecendo no mundo, fica difícil de entender tudo e viver em paz. Imagino Deus olhando para nós e balançando a cabeça e dizendo “Eu enviei meu Filho para que vcs tivessem uma vida de paz, mas…”
    É muito triste, triste demais.

  2. Quanta tragedia, Deus deve estar muito triste com tudo isso! Pior que isso acontece o tempo todo nos dias de hoje! Nao entenderam nada o porque Deus enviou seu filho!

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