Marisa Ferrari entrevista profª Marcia Melo: Filhos!

Criar filhos dá trabalho! Os desafios são constantes. Disponibilidade, amorosidade, entrega e doação fazem parte do pacote. Conversamos com a Profa. Dra. Marcia Melo, pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, na área de relacionamentos interpessoais na infância. Ela orienta estudos de mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano e no Programa de Psicologia Clínica e é consultora de órgãos governamentais para intervenções preventivas. Ela esclarece algumas questões para ajudar a encarar melhor, mais preparados, a dor e a delícia dessa missão.

 

 

Fale sobre as particularidades, necessidades e limitações da infância e da adolescência.
Isso dá um livro, mas vamos lá. É patente que a infância e a adolescência são momentos bastante particulares do processo de desenvolvimento humano. Esse processo diz do nosso percurso ao longo do ciclo de vida rico em experiências que vão se revestindo de sentido e nos constituindo como indivíduos. Desde a infância vamos aprendendo a conviver na convivência com os outros. A infância é um momento da vida que inicia com total dependência dos pais (quando falo pais, me refiro a quem cuida, ama e são referências insubstituíveis para as crianças e jovens).

Progressivamente a criança vai desenvolvendo autonomia, especialmente se ela for incentivada a isso, e se dando conta do seu mundo físico e social. As experiências que os pais proporcionam às crianças são fundamentais no sentido de ensinar a elas – por meio de suas ações e orientações – o valor de si mesmo e do outro. Nesse sentido é importante que, em termos gerais, a criança aprenda a reconhecer e lidar com sentimentos, tolerar frustrações, admitir falhas, desenvolver empatia (reconhecer necessidades do outro).

Não é incomum que alguns pais acreditem que fazer pela criança ou mesmo sempre dizer sim é prova de amor e que se eles não fizerem dessa forma ela ficará traumatizada. Ou ainda colocar a criança diante de algumas escolhas muito precocemente. Certa vez, vi uma jovem mãe perguntando para a filha de um ano e meio se ela queria alface ou batata frita e quando a criança escolheu a segunda opção ela ficou tentando convencer a filha a comer a alface. Isso nos ensina que talvez fazer esse tipo de escolha nessa idade seja superestimado e que ao indicarem a possibilidade de escolha para os filhos, os pais devem ter clareza se terão condições de validá-la, mesmo que seja uma escolha divergente da que eles gostariam.

A adolescência, por sua vez, inicia-se com mudanças no corpo, conhecida como puberdade, sendo permeada por mudanças cognitivas, sociais e de perspectiva sobre a vida. Nesse momento, o jovem passa a questionar o mundo de forma mais sofisticada do que fazia poucos anos antes. Isso às vezes deixa os pais desorientados, pois os recursos que dispunham já não são suficientes para lidar com o filho.

Um ponto que merece destaque é que o adolescente passa a agregar como referência, até então predominantemente familiar, seu grupo de colegas. Ter lugar no grupo, ser aceito por ele passam nortear muitos dos comportamentos do adolescente. Mas isso não significa que a família deixa de ser importante para o jovem, pelo contrário, ele continua e continuará precisando da presença dos pais: de ensinamentos, afeto, respeito, cumplicidade, regras, limites. Só que agora uma presença nem sempre física, como é necessário ser na infância. Essa presença se faz na medida em que esse jovem carrega valores, referências importantes que se constroem no relacionamento com sua família. É um desafio para os pais continuar acompanhando, demonstrando interesse pela vida do filho, por seus interesses, valores e amizades, sem sufocar e querer controlar. É um equívoco achar que como ele já consegue cuidar de si, e até ficar sozinho em casa, não precisa mais dos pais por perto. Seja na infância ou na adolescência é sempre importante que os pais estejam atentos e sensíveis aos comportamentos do filho mais do que com suas expectativas em relação a ele.
Os tempos atuais parecem ainda mais desafiadores para os pais na formação das nossas crianças e adolescentes?
Penso que todos os momentos históricos e culturais impõem desafios aos pais e à sociedade para a criação de filhos e a formação de cidadãos. Vivemos o nosso momento marcado por mediadores até então desconhecidos como as mídias sociais e eletrônicas, pelo aumento da violência. Hoje, as crianças têm acesso ao mundo exterior à família muito mais cedo e ela nem precisa sair de casa para isso. Se os pais não orientarem, deixarem claros os limites, as consequências podem ser bastante angustiantes para eles, para os filhos e para a sociedade.

 

O processo de transição dessas fases é sempre complexo ou pode, deve ser tratado de uma forma mais “simples e natural”?
Entendermos o desenvolvimento humano como um percurso dinâmico no qual aprendemos e apreendemos em e com as nossas experiências de vida, permite, em parte, que lidemos com as mudanças dos filhos (e com as dos pais) de maneira mais natural. Mas isso não quer dizer que seja simples, pois vai requerer dos pais constante sensibilidade, flexibilidade e disponibilidade para rever modos de agir, valores e posições, enfim, se transformar.

 

Quais aspectos comportamentais da juventude contemporânea mais causam incertezas, dificuldades e preocupam os pais?
Questões sociais importantes constituem-se em preocupações dos pais como a violência, uso e abuso de álcool e drogas, gravidez precoce. Os jovens passam a andar em grupos, ir para baladinhas, frequentar mais a casa de colegas; passam a ter acesso mais facilitado a muitas informações e possibilidades de experiências que seus pais não conseguem conter. E isso muitas vezes é bastante angustiante. Para além dessas questões, alguns comportamentos dos adolescentes que podem passar despercebidos, mas não menos importante, são o humor deprimido e o isolamento social, o que inclui pouquíssima comunicação e convivência com os membros da família. Tem sido cada vez mais comum os jovens passarem muito tempo em frente à TV e envolvidos com jogos eletrônicos e esses acessos tem sido facilitado pelos pais desde a infância. Somado a isso a escola possibilita muitas oportunidades de convivência que nem sempre são positivas para os adolescentes, produzindo alterações comportamentais.

 

A importância de não pular fases. Preservar a infância e a adolescência é fundamental para o bem estar, o equilíbrio da vida adulta. De que forma o contexto social, cultural e a atuação dos pais influenciam e são decisivos nesse processo?
Não dá para pensar na preservação da infância e da adolescência e mesmo a paternidade e a maternidade sem levar em conta as mudanças culturais. Certamente, há 40 anos – ou bem mais – era inimaginável ou mesmo inadmissível que uma adolescente tivesse espaço na ONU por lutar pelos direitos das jovens à educação em seu país. Tais mudanças permeiam a educação dos filhos por vezes produzindo conflitos familiares, pois os pais foram criados em outro contexto histórico. E essas diferenças desafiam os pais a estarem enraizados em valores claros e consistentes que orientem suas ações cotidianas. Essa é uma parte da questão, pois o como fazer impõe desafios aos pais. Fazer a si mesmo algumas perguntas pode ajudar: qual educação quero dar ao meu filho? Isso vai requer o que de mim? Quais mensagens que minhas ações podem estar passando para o meu filho? Pensar em fases pode nos aprisionar numa certa perspectiva e o que fugir dela pode nos parecer de pronto inadequado e ao mesmo tempo preocupante. Prefiro pensar na infância e na adolescência como um processo contínuo de aprendizagem em que vamos nos deparando com novas demandas, novas exigências.

 

O conflito de gerações faz parte do processo? A crise é inevitável e até produtiva, benéfica?
Não tem como não fazer parte do processo, pois o conflito faz parte do relacionamento entre as pessoas por termos posições diferentes e divergentes. Entendo isso como muito saudável e necessário para nosso amadurecimento como sociedade. Isso não poderia ser diferente na relação entre pais e filhos, mas por vezes alguns embates não são tão benéficos para a relação. Especialmente quando a primeira opção dos pais é querer fazer valer sua posição sem ter clareza de seu sentido e ainda não explicitam seus argumentos. Quando o não é simplesmente porque eu não quero, por exemplo, você retira a possibilidade de reflexão, de aprendizado significativo que aquela situação poderia produzir de parte a parte. Ao mesmo tempo esse tipo de atitude ensina ao filho que ele não precisa argumentar, é só bater o pé e se opor.

 

O prolongamento da adolescência é uma realidade que deve ser encarada com preocupação pela sociedade? O quanto isso é nocivo?
Essa pergunta nos leva a pensar no próprio conceito de juventude que vem sendo reeditado ao longo das gerações. É evidente o quanto em nossa sociedade o tempo da adolescência vem sendo estendido, iniciando bem mais cedo e ocupando um espaço entendido no passado como próprio da idade adulta. Isso significa que a infância está mais breve e que assumir responsabilidades da vida adulta está sendo postergada, com possibilidade de não se concretizar plenamente, considerando que muitos adultos permanecem dependentes dos pais de alguma forma. Tenho visto que muitos adolescentes e adultos mais jovens têm desmoronado diante das pressões presentes na escola, na universidade e no trabalho. Na universidade, por exemplo, uma discussão que tem sido muito presente é o sofrimento emocional dos alunos que se veem com uma estrutura emocional frágil para lidar com posições divergentes das suas, frustações, pressões e responsabilidades. Algumas vezes reivindicam mudança do outro para tornar a situação menos angustiante para si. É praticamente um grito de socorro que nos implica a todos, como pais, instituições e sociedade.

 

Adolescentes e autoestima. Muitos jovens têm dificuldades de lidar com a autoimagem e também de ser aceitos por si mesmos e pelos outros. Como ajudar? Essa questão pode levar a comportamentos de risco, drogas, transtornos?
Todos temos a necessidade de sermos reconhecidos pelo outro, o que colabora para a construção de nossa autoimagem e autoestima. Importante destacar que essa construção é um processo contínuo, iniciado na infância, que se estrutura no contato com o outro. Logo, os pais têm um papel primordial nesse processo. Valorizar os filhos por seus esforços, reconhecer suas potencialidades e fragilidades (evitando agir somente mobilizado por suas expectativas), não comparar os filhos entre si ou com outras pessoas e serem modelos de atitudes positivas são algumas ações que ajudam as crianças e jovens a se sentirem confiantes do seu valor, sem, contudo, se considerar superior aos outros, e de sua capacidade de enfrentar desafios, superar insucessos, ser flexível, e de contribuir para seu grupo e para a sociedade. Quando o contexto social não cria condições para o desenvolvimento desse repertório, o jovem pode experimentar insucessos em seus relacionamentos e, por conseguinte no lugar que ocupa no grupo. E isso pode concorrer para o desenvolvimento de comportamentos depressivos, ansiosos, abuso de álcool e drogas, falta interesse pela escola.·.

 

Essa geração já nasce ligada, plugada na tecnologia, celular, videogames, internet. Como estabelecer limites e orientar sobre o uso, os riscos e excessos no mundo virtual e as consequências na vida real?
O ponto de partida que precisamos estabelecer para essa discussão é nossa disposição e desejo de consumir toda essa tecnologia, e para que. Me parece que hoje em dia, os pais precisam disponibilizar essas ferramentas com uma alegada preocupação de inclusão social dos filhos e se esse acesso for negado ou parcialmente negado, a vida criança ou do jovem sofrerá consequências terríveis. O que me preocupa é que há uma tendência crescente de pouca convivência olho no olho. Os relacionamentos são muitas vezes mediados ou até substituídos pela tecnologia e isso é assustador! É importante que nos demos conta disso e ofereçamos às crianças opções e a tecnologia seja apenas uma delas – não a mais importante. Isso significa que devemos dar diferentes oportunidades às crianças e jovens de conhecerem, de experimentarem diferentes formas de convívio. Às vezes os pais não conseguem perceber os perigos. Tudo pode começar com a criança pequena sentada na cadeira do restaurante com o tablet na mão enquanto os adultos conversam; em casa, enquanto os pais jantam, ela assiste TV e essa rotina acompanha essa família por longo tempo até que aquela criança esteja adolescente. Aí, ela se tranca no quarto horas a fio, os pais chamam para almoçar, jantar, e ela continua no quarto jogando videogame, postando vídeos na internet. Enfim, vivendo a vida que lhe foi apresentada. Em conversa com amigos, os pais dizem: nossa, tá difícil, ele é muito fechado, nos ignora e quando a gente reclama, ele bate a porta e sai resmungando. Não quer saber de estudar. Sabe como é, coisa de adolescente! É importante que entendamos que as coisas não surgem do nada, elas são progressivamente construídas. Vários dos comportamentos das crianças e jovens não aparecem e desaparecem com a idade. Eles apenas podem mudar de forma. Faz toda a diferença o jeito que lidamos com as situações e isso tem a ver em grande parte com os valores familiares.

 

Verdades e mitos sobre a maternidade. Romantizar a maternidade pode causar muitas frustrações?
Em termos sociais e culturais, existe um plano traçado para nós, mulheres, que pode nos fazer acreditar que todas devem ser mães e as que têm uma opinião diferente são vistas com uma certa desconfiança. Será que ela tem problemas para engravidar? Uma decorrência desse plano é supor que as mulheres estão preparadas para a maternidade. E a história não é bem assim. Não existe exatamente uma preparação porque em muitas circunstâncias, só aprendemos fazendo e a disponibilidade para aprender faz toda a diferença. Quando os pais lidam com suas expectativas e não com seu filho real, é de fato muito frustrante, acabando por comprometer o relacionamento. Mais do isso, ao se preocupar somente com o resultado (se o filho vai passar de ano, se ele vai entrar numa boa faculdade, se vai ganhar um campeonato, se está bem preparado para competir no mercado de trabalho), os pais perdem o contato com o processo de seus filhos de aprender, de apreender, de estar no mundo. E quando você não atenta para o processo, não tem como repensar, redefinir rotas. E no final das contas de alguma forma ambos – processo e resultado – ficam comprometidos.

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