Crítica: Stray (2020)

No breve porém tocante documentário Stray (2020, 71, min.), a documentarista Elizabeth Lo utiliza diversos close-ups. São close-ups por vezes tão intensos, que parecem capturar a alma das criaturas que estão sendo filmadas, através de seus olhares quase sempre contemplativos. Estas criaturas são cães, mais precisamente, os cães que vivem nas ruas de uma grande cidade. Suas faces são magníficas, mas nem sempre no melhor sentido do adjetivo. São faces que representam a dureza das ruas, e revelam improváveis personagens cujas trajetórias nós nunca saberemos.

Esta estreia de Elizabeth Lo como documentarista de longa-metragens explora a agitação urbana da cidade de Istambul, na Turquia, de forma parecida com o documentário Gatos (Kedi), lançado em 2017. Se em Kedi os gatos vêm e vão, forjando laços com os humanos porém nunca se estabelecendo em um lugar, em Stray, os solitários e sociáveis cães movem-se pela cidade com um potente senso de independência, mas também demonstrando um certo interesse pelas pessoas ao redor. O filme de Lo é de uma atmosfera leve e esperançosa, e se enquadra como um tipo bem diferente de filme sobre animais. Através das aventuras caninas de seus personagens centrais, Stray reflete sobre as divisões políticas e sociais, e as hierarquias culturais que definem os dias de hoje.

Para os padrões ocidentais, a Turquia tem uma atitude incomum no que diz respeito aos animais; como é explicado nos créditos iniciais, depois de um século de tentativas para erradicar seus cães selvagens, o país decidiu fazer uma trégua com eles, transformando em crime o sacrifício dos cachorros de rua. A diretora Lo segue estes cachorros no meio do tráfego da hora do rush, pela manhã e também à noite, enquanto caminham pelas ruas e parques, perseguem os carros, procuram alimento nas lixeiras e bebem água nas fontes. E também, é claro, enquanto perseguem um ou outro gato por aí.

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Além da direção, Lo é também a cinegrafista e editora do documentário. A cineasta entrelaça ação contemplativa com algumas citações do filósofo admirador de cães Diógenes, enquanto acompanha dois trios de personagens: um canino (duas fêmeas de grande porte e um encantador filhote), e outro humano, formado por três jovens imigrantes da Síria, chamados Jamil, Halil e Ali. Vivendo na rua já há algum tempo, o trio vende pequenos itens durante o dia, e à noite, cheiram cola e dormem em locais de construção onde dividem os cobertores com o trio de cães. Quando estes seis personagens estão juntos, formam uma esfarrapada mas unida família de órfãos.

Apesar da cadela Nazar e do filhote Kartal serem encantadores à sua própria maneira, o filme pertence realmente à bela cadela Zeytin. Inteligente e observadora, Zeytin é o foco principal da produção, especialmente por sua total independência e auto-suficiência. Lo acompanhou Zeytin por seis meses, e o trabalho de câmera é nada menos que excepcional, além de profundamente expressivo. Alguns dos close-ups em Zeytin criam momentos de pura admiração e reflexão.

De maneira geral, Stray derrama uma perfurante luz sobre o que significa ser um excluído em uma fervilhante metrópole. Ainda que os cães protagonistas encontrem algumas pessoas atenciosas com quem passam uma hora ou duas, é surpreendente a frequência com que eles mal são notados pelos pedestres (por sorte os motoristas os notam e desviam deles). Os jovens sírios também passam batidos, na maioria das vezes. São notados apenas quando suas presenças incomodam alguém, ou quando são parados pela polícia. Numa dura passagem do filme, os três são expulsos de um prédio abandonado onde dormiam, enquanto o homem que os coloca para fora os manda ir para casa. Como se houvesse uma.

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Através de uma combinação perfeitamente calibrada de percepção e emoção, Stray oferece uma nova perspectiva da vida nas sombras, desde a liberdade das ruas até a triste sensação de abandono. Quando o frio da noite cai sobre os excluídos, cães e pessoas dividem o mesmo cobertor, num ato que evidencia uma vez mais, ainda que de maneira triste, a maior e mais honesta relação de amizade que existe.

Stray será lançado online no dia 05 de março.

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Imagens: Rooftop Films.

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