Apartamento 03

Olhei para ele e senti o amor escorrer de seus olhos.

Era como se fosse a primeira vez:

Algum ar de encantamento,

Poeira levantada pelo vento,

O tempo parado sobrevoando o apto 03.

Meu vestido lilás, crepe fino e tão bem desenhado,

As unhas vermelho magenta a dedilhar suavemente sua pele branca…

Nos cabelos fartos, nos olhos amendoados e invasivos

Um déjà vu, um alvoroço que me povoava

Um gin, um trago, a fumaça projetada em breves círculos…

Eu sorria fácil e tanto porque o sorriso me brotava:

Ele, toque firme, mas sem pressa percorria o decote do meu vestido, braços, colo, peito.

Havia de fundo algum som conhecido orbitando nosso cenário

Era manhã e a vida lá fora tinha pressa.

Os carros, os coletivos, os passageiros… tudo vivo e  diminuto como cena que vai se apagando da vista quando mais se distancia.

Eu cheirava a flor desabrochando na dança suave do meu corpo envolvendo o outro corpo

O outro mundo, o outro afeto.

Ele se esparramava e espalhava as folhas imensas dos croquis coloridos pelo tapete da sala

Minhas mil versões…

Nos dávamos bem e tanto nos doávamos entre um e outro badalar dos sinos da antiga igreja

Velas escorrendo ceras… maçãs e livros a adornar o caminho

Eu existia em cada uma de suas infindáveis estórias

Toda vez que ele despia-se do modelo aprendido desde a infância,

Da fórmula gasta e inútil do homem sedutor… ali éramos  a soma que produzíamos juntos,

A fusão de nossos desencontros,

Um bocado de amor, tanto de reconhecimento, e a vontade legítima de estar:

Mesmo ritmo, mesmo intento, mesmo calor e o mesmo desassossego.

Dali, tantos versos surgiram em folhas de rascunho,

Tantas horas dedicamos ao desafiador exercício da cumplicidade,

Tantos boatos,

Tantas lições difíceis transpostas por vontade mútua,

Por fé e pela humanidade que carregamos no peito.

Tantas voltas vividas e alguns tantos cálices de vinho depois

Olho para o apartamento 03 que permanece intacto, apesar do caos e do renascimento, e ali estamos:

Mulher e homem, quatro mãos, a pintar novos croquis.

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Imagem: Freepik

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