Crítica: A Última Coisa Que Ele Queria (The Last Thing He Wanted) | 2020

Há uma razão pela qual, ao longo de uma carreira de mais de sessenta anos de duração, o notável trabalho da escritora Joan Didion só foi adaptado para o cinema duas vezes. Em 1972, Didion e seu marido, John Gregory Dunne, escreveram o roteiro de O Destino que Deus Me Deu (Play It As It Lays), baseado em seu romance publicado em 1970, e apesar das boas críticas recebidas pelo filme, a própria Didion parecia convencida de que seu trabalho não era necessariamente adaptável para outras mídias. Hollywood captou a mensagem, e mais de 50 anos se passaram até que alguém transformasse novamente o trabalho de Didion em uma obra cinematográfica. A empreitada chega com este A Última Coisa Que Ele Queria (The Last Thing He Wanted, EUA, 2020), novo filme da diretora Dee Rees (Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi), e também seu primeiro escorregão na carreira. Trata-se de um filme incoerente que massacra o material no qual é baseado, com escolhas narrativas abismais e estrelas de Hollywood escaladas erroneamente em seus papéis.

Os problemas já começam no próprio material de origem, considerado um dos trabalhos mais fracos e menos pessoais de Didion, que apresenta coincidências nada sutis e personagens rasos que movimentam uma cansativa trama política. Tal escolha de projeto não foi a melhor por parte de Rees, diretora acostumada a trabalhar com temas como as relações familiares e suas dificuldades. Em seus trabalhos anteriores, Rees abordou personagens que eram definidos por suas famílias e seus relacionamentos quase sempre disfuncionais. Em A Última Coisa Que Ele Queria, apesar do escopo político, uma dinâmica similar se desenvolve.

Apresentada inicialmente como uma obstinada e corajosa repórter que entrega seus melhores trabalhos quando está (quase sempre literalmente) na linha de fogo, Elena McMahon (Anne Hathaway), tem trabalhado cobrindo histórias sobre revolução e violência durante os anos 80 na Nicarágua, ao lado de sua dedicada fotógrafa, Alma (Rosie Perez, de Aves de Rapina). Anos mais tarde, a dupla se encontra encalhada em Washington uma vez que o jornal onde trabalham congela toda e qualquer atuação de seus repórteres na América Central, impedindo Elena de descobrir novas histórias. Mas esta não é a única coisa acontecendo na vida da repórter, e Rees e seu co-roteirista Marco Villalobos passam voando por outras complicações, como a morte de sua mãe, sua solitária filha adolescente, um divórcio, uma mudança de cidade, um diagnóstico de câncer de mama e (UFA!), o súbito retorno de seu pai, Dick (Willem Dafoe, pagando as contas).

Quando Dick adoece na Flórida, Elena abandona seu trabalho sem maiores ambições cobrindo a campanha de reeleição do então presidente Ronald Reagan, para ajudar o pai. Essa é apenas uma das muitas contradições do filme, uma vez que Elena abandona o que sabe fazer de melhor, irrita profundamente o seu já descontente editor, além de ignorar um pacote de fotos de conteúdo periclitante que foi deixado em seu quarto de hotel. Eventualmente, A Última Coisa Que Ele Queria mira conectar todos estes aspectos – seu emprego, seu pai doente, as fotos – de maneira íntima, contudo, nada se encaixa em uma narrativa coerente. Para piorar, o filme ainda tenta engrossar a trama com uma série de maquinações políticas (e inacreditavelmente enfadonhas) que alcançaria o alto escalão de diferentes governos e seus comandantes.

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A doença de Dick desconstrói tudo o que sabíamos sobre Elena, desde sua dedicação ao trabalho e sua fortalecida determinação. A sinopse oficial do filme na Netflix diz que Elena “perde o fio de sua própria narrativa” à medida em que o filme se desenrola, mas na verdade é A Última Coisa Que Ele Queria que perde seu rumo narrativo e seu controle. Saltando de Miami para Nicarágua para Costa Rica, etc, Elena se encontra presa em uma bizarra teia que se origina da insistência de seu pai para que ela efetue um último trabalho para ele, garantindo-lhe uma vitória final antes que ele morra ou perca de vez sua sanidade. Independente do fato de que Elena é em sua essência uma repórter sempre ansiosa para desenterrar as más ações dos senhores da guerra em torno da América Central, ela aceita o pedido do pai, o que na verdade não consiste em nada mais do que Elena assumir o lugar do pai nas tramitações que se seguem.

Ah, o trabalho dele? Tráfico ilegal de armas, fornecendo para as mesmas pessoas que Elena vem tentando expor ao longo de toda sua carreira profissional. Sem dúvida é um favor e tanto o que Elena precisa cumprir, mas em um filme de narrativa tão frágil e forçada, ele se torna incompreensível. Alguns flashbacks fuleiros e algumas narrações ainda piores tentam cobrir os buracos deixados pelo roteiro, mas o filme permanece incompreensível. Com quase duas horas de duração, A Última Coisa Que Ele Queria deixa a impressão de que uma ou outra cena foi cortadas na edição, numa tentativa de deixar o texto um pouco mais leve do que no romance de Didion. Resumindo: Nada se conecta, nada dá liga e todos os fios narrativos realmente se perdem por completo.

Hathaway, que já vem de duas bombas no currículo (o suspense Calmaria e a comédia As Trapaceiras), tenta ao máximo manter Elena em um ponto de equilíbrio através de uma jornada cada vez mais bizarra, mas as mudanças de prioridades e motivações de sua personagem nunca permitem que a atriz realmente conheça sua Elena. Fica a sensação de que a própria personagem flutua sem nenhuma noção do que está realmente acontecendo; sua determinação desabando à face de tantas traições e complicações. Tal artifício poderia até funcionar à favor da personagem, mas tudo é arruinado por um absurdo retorno completamente fora de contexto da “Elena Repórter de Guerra”, e digo para vocês, para uma profissional tão experiente e de nervos de aço, ela é péssima em analisar pessoas, lembrar detalhes e agir apoiada em qualquer medida básica de segurança. Ela é o tipo de garota capaz de embarcar em uma fuga no meio de uma cidade estranha, mas não é cuidadosa o suficiente para trancar a porta do seu próprio obscuro quarto de hotel.

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Juntando-se à Hathaway como outro pobre infeliz completamente mal-escalado está Ben Affleck, claramente trabalhando para receber mais um cheque gordo da Netflix. Affleck interpreta um oficial do alto-escalão do governo americano que pode ou não estar ajudando Elena, mas que definitivamente está compenetrado em levá-la para a cama. Dafoe como sempre tenta salvar a hora no papel do pai de Elena, mas ele e Hathaway em nenhum momento demonstram qualquer tipo de química familiar, e atuam como se fossem adversários. Outros personagens de menor relevância surgem e somem sem maiores explicações, sem que o espectador saiba sequer os nomes deles ou mesmo seus reais papéis na trama. Chega a ser vergonhoso.

Mas mesmo com o plot ilógico e o medíocre trabalho com os personagens deste A Última Coisa Que Ele Queria, outras facetas da habilidade de Rees podem ser encontradas. Ambientado em sua maior parte na década de oitenta e em várias locações, os elementos relativos ao período são imaculados. Do figurino ao design de produção, tudo leva à um mundo crível e muito real (apesar do fato de que narrativamente NADA no filme é crível o suficiente). As tomadas construídas por Rees elevam o nível mesmo das cenas mais fracas, e a sequência inicial, que transporta o espectador junto de Hathaway e Perez literalmente através de um aeroporto, é excepcional.

Todo o resto, entretanto, consiste na última coisa que qualquer fã de Didion, Hathaway ou Rees iria querer. O trabalho de Didion é brilhante como prosa, mas não é material adaptável para outras mídias. A Última Coisa Que Ele Queria é um erro que nunca deveria ter saído do papel.

A Última Coisa Que Ele Queria estreia no catálogo da Netflix no dia 21 de fevereiro.

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Uma resposta

  1. Alguém também viu o Samuel Jackson fazendo figuração no filme…!? Ele estava usando chapéu de cowboy….!!! Obrigado…..

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