Crítica: Doutor Sono (Doctor Sleep) | 2019

Eu me lembro de que quando li Doutor Sono, em meados de 2014, tive a forte impressão de que tratava-se do livro mais direto do mestre do horror Stephen King. Geralmente um autor que gosta de uma boa descrição, seja de ambientes, personagens, etc, King é famoso por seus livros longos, que quase sempre passam das mil páginas de extensão. Mas o livro Doutor Sono é uma exceção a esta regra, e suas 500 e tantas páginas embarcam o leitor em uma frenética viagem de volta ao famigerado hotel Overlook, cenário de uma das obras máximas de King, O Iluminado (The Shining), best-seller que por sua vez foi adaptado para o cinema no hoje clássico do horror dirigido por outro mestre, o diretor Stanley Kubrick, em 1980.

Não tenho receio nenhum em dizer que Doutor Sono é um dos melhores livros de King. Digo isso não só pela escrita dinâmica e empolgante, mas também pela história, que retoma com respeito e relevância a obra original que este ano completa 42 anos de existência. Quando surgiram os primeiros rumores sobre esta adaptação cinematográfica, fiquei com receio de que tal material tão bem elaborado caísse nas mãos erradas, ou que virasse refém de alguma adaptação para a TV de orçamento reduzido. Não foi o que aconteceu, e felizmente este Doutor Sono (Doctor Sleep, EUA, 2019), caiu no portfólio da powerhouse Warner (produtora também do original de Kubrick), e nas habilidosas mãos do diretor Mike Flanagan, cujo bom currículo inclui a correta adaptação de outra obra de King, o suspense Jogo Perigoso (Gerald’s Game) para a Netflix, e também a excepcional minissérie A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House), uma das melhores séries disponíveis no catálogo da Netflix.

E Flanagan não decepciona. Doutor Sono é mais um sólido trabalho do diretor, que tem se revelado um exímio artista visual, basta uma olhadela em Maldição da Residência Hill para comprovar o que estou escrevendo. O filme é extremamente fiel ao livro, que por sua vez já trazia uma narrativa bastante cinematográfica, com passagens diretas e trocas de ambientação bastante dinâmicas. Flanagan mantém o mesmo ritmo, e se tem algo que o filme falha um pouco, é que ao contrário de O Iluminado, Doutor Sono não é muito assustador. Mas ei, o livro também não era, e o grande mérito da história de King é finalmente revelar o que o destino guardava para o pequeno protagonista de sua história original, o garotinho especial Danny Torrence, que sofreu o diabo no hotel Overlook quando as assombrações do local e o vício em bebidas de seu pai (interpretado de maneira inesquecível por Jack Nicholson no clássico de Kubrick), transformaram sua vida e sua concepção de realidade para sempre.

Em Doutor Sono, que se passa em 2001, praticamente vinte anos depois dos eventos funestos ocorridos no hotel Overlook, Danny (que foi interpretado por Danny Lloyd em O Iluminado), já é um adulto, e ganhou a face de Ewan McGregor (sempre carismático e competente). Marcado pelo trauma do passado, Dan carregou por muitos anos o legado de raiva e alcoolismo do pai, até que finalmente decide se estabelecer em New Hampshire, em busca de um pouco de paz. Lá ele consegue parar de beber e também consegue um emprego em uma casa de repouso. Suas habilidades psíquicas, muito reprimidas pela sua bebedeira, re-emergem e permitem-lhe fornecer conforto para os pacientes moribundos do local. Auxiliado por um gato que pode sentir quando alguém está prestes a morrer, Dan adquire na instituição o apelido de Doutor Sono.

Enquanto isso, em outra parte do país, Abra Stone (Kyliegh Curran), uma corajosa adolescente, começa a manifestar os mesmos poderes psíquicos de Dan quando ela aparentemente prevê os ataques terroristas do 11 de setembro. Ela inadvertidamente estabelece um vínculo telepático com Dan; e numa noite, por acidente ela testemunha telepaticamente o ritual de tortura e assassinato de um menino executado pelo Verdadeiro Nó, um grupo de quase-imortais (muitos dos quais possuem a mesma habilidade psíquica de Abra e Dan), que vagam pela América e se alimentam de uma essência humana produzida quando as pessoas que também possuem o dom estão prestes a morrer.

A líder do Verdadeiro Nó, a diabólica Rose Cartola (a bela Rebecca Ferguson, da franquia Missão Impossível), torna-se ciente da existência de Abra, e depois que os integrantes do Verdadeiro Nó começam a morrer de sarampo (após contrair a doença de sua última vítima), ela acredita que Abra é a única pessoa capaz de curá-los. Formando uma improvável aliança, Dan e Abra iniciam uma batalha de vida ou morte contra Rose, ao mesmo tempo em que Dan precisará de uma vez por todas, enfrentar os fantasmas de seu agora ressurgido passado, o que inclui o sinistro mistério envolvendo a mulher do Quarto 237 do hotel Overlook.

O roteiro firme à cargo do próprio Flanagan trata os personagens com a mesma riqueza que King os tratou em seu livro. Todos os personagens, tanto os centrais quanto os coadjuvantes, os bons e os maus, têm suas motivações sempre claras e bem definidas. Longo e rico em detalhes, Doutor Sono pode ser definido como uma corrida de 2 horas e meia de duração onde o bem e o mal se enfrentam até as últimas consequências, e cujo prêmio para Rose é a sobrevivência, e para Danny, a redenção. A trama sempre destaca o peso do passado na vida de Danny, o trauma que carrega em seus ombros por tanto tempo, e a oportunidade que sua pessoa ganha de lidar com tudo isso, de uma vez por todas.

Mas é quando o clímax do filme nos leva de volta ao Overlook, que a mágica de Doutor Sono atua com força total. E grande parte do mérito desta sensação é de Flanagan e seu apuro visual. A maneira com que Flanagan aproveita a concepção visual do filme do mestre Kubrick e a aplica em seu próprio é simplesmente genial, e funciona como uma espécie de réplica anabolizada de seu trabalho em A Maldição da Residência Hill. O trabalho das equipes do design de produção e cenários e a fotografia à cargo do colaborador de Flanagan em Residência Hill, Michael Fimognari, são simplesmente primorosas, e ajuda o público a tornar-se parte do hotel assombrado. Flanagan também se apoia na segurança de McGregor, que carrega boa parte do filme nos ombros, e na utilização de poucos mas precisos efeitos visuais, tornando o filme uma experiência de horror mais realista do que o recente It: Capítulo 2, por exemplo.

Como fã voraz do trabalho do mestre Stephen King e especialmente de seu livro que dá nome ao filme, talvez seja fácil para mim encontrar motivos para elogiar este Doutor Sono. Mas a questão é que apesar de reconhecer que não se trata de um filme que deixará muita gente acordada à noite, Doutor Sono é uma muito necessária conclusão para um dos personagens mais marcantes de todo o cânone de King. Quando o conhecemos, Danny Torrance era apenas um menino assustado e dono de um dom muito especial. Sob a performance precisa de McGregor e sob a direção impecável de Flanagan, o personagem finalmente se torna o protagonista de sua própria história.

Doutor Sono estreia nos cinemas brasileiros no dia 07 de novembro.

5 respostas

    1. Valeu, João! Como acontece na grande maioria das vezes, eu assisto aos filmes em sessões antecipadas fechadas para a imprensa e crítica especializada.
      Grande abraço! Volte sempre ao Portal do Andreoli.

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