Acho que só me resta agradecer ao mestre Martin Scorsese. Afinal, foi dele a descoberta mais exuberante e atordoante do cinema atual: a loiraça Margot Robbie. Ao rodar o excepcional O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street) em 2013, Scorsese não só arrancou a melhor performance do astro Leonardo DiCaprio até então (atuação que viria a ser superada dois anos depois com o mesmerizante O Regresso, dirigido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu), como também descobriu o talento (e os outros atributos) desta atriz australiana de estonteante beleza.
Depois de estourar a boca do balão no filme de Scorsese, Robbie pingou aqui e ali em algumas produções um tanto singelas, como por exemplo o mediano Golpe Duplo (Glenn Ficarra, John Requa, 2015), que serviu de veículo para o astro Will Smith. Isso até 2016, quando Margot voltou a atuar ao lado de Smith no aguardado Esquadrão Suicida (Suicide Squad), superprodução da Warner/DC que mostrou-se extremamente decepcionante. Apesar da fraca recepção de público e crítica, houve consenso em pelo menos um aspecto da produção: Robbie e sua sexy vilã Arlequina foi de longe a melhor coisa do filme.
Faltava à atriz então, em seus pouco mais de quatro anos de carreira no cinema, um papel de maior substância dramática, para colocar seus recursos interpretativos à prova. E este papel surge neste ácido e irreverente I, Tonya (EUA, 2017), em que Robbie não só corresponde, como ainda entrega uma performance divisiva em sua carreira. A carreira de Margot pode ser dividida entre antes e depois deste I, Tonya.
Dirigido por Craig Gillespie (de A Garota Ideal e Horas Decisivas), e escrito por Steven Rogers (do açucarado P.S. Eu Te Amo), I, Tonya é uma inspirada biografia em tons de comédia de humor-negro que aborda a tragicômica trajetória da patinadora olímpica Tonya Harding, que para quem não conhece, foi uma das maiores patinadoras no gelo da história dos EUA, sendo duas vezes campeã Olímpica. Tonya porém, foi banida para sempre do esporte após confessar seu envolvimento na agressão de outra patinadora americana, Nancy Kerrigan.
Nas mãos de Gillespie e Rogers, a história ganha contornos hilariantes, absurdos e violentos, que pincelam a vida da figura mais controversa da patinação no gelo. O filme de Gillespie passa longe da abordagem típica das biografias, e o filme mais parece uma nova temporada da série Fargo. I, Tonya não se preocupa em “explicar” sobre sua personagem central, mas sim em derramar uma nova luz sobre a mesma, o que resulta em um filme estranho e original.
Desde o início, o tom deste I, Tonya é algo completamente inesperado pelo público. Principalmente pelo fato de que a produção elucida de maneira esperta e surpreendente, que durante toda sua vida Harding teve de lutar. Sua mãe, interpretada aqui com aterradora perfeição pela veterana Allison Janney (Beleza Americana, 1999), era um verdadeiro poço de palavrões, que abusava fisicamente da filha, e que convenceu a si mesma de que foi sua opressão que transformou Tonya em uma estrela.
Harding também colecionou uma série de relacionamentos abusivos, até acabar se envolvendo com o bigodudo Jeff Gillooly, interpretado com uma perigosa mistura de cretinice e fúria por Sebastian Stan, o Soldado Invernal do universo cinematográfico da Marvel. Gillooly é um daqueles personagens tão descaradamente estúpidos, que a violência simplesmente passa a fazer parte de sua rotina, apenas pelo fato de que ele não consegue pensar numa outra maneira de resolver os seus problemas. Jeff e Tonya passam boa parte do filme gritando e brigando (e algumas vezes atirando), deixando nítido o fato de que Tonya chegava a canalizar seu ódio o transformando em combustível para fazer o que ela realmente sempre foi boa: patinar no gelo. Vale ressaltar que Gillespie e seu diretor de fotografia, Nicolas Karakatsanis (dos thrillers A Entrega e Bullhead), entregam um trabalho visualmente fenomenal ao capturar a fluidez e a excitação da patinação no gelo, em todas as suas cores.
Entretanto, a força motriz de I, Tonya é mesmo o trabalho maravilhoso de Robbie, sem dúvida o melhor de sua ainda curta carreira. Sua abordagem à Harding vai muito além de apenas uma transformação física, e ela apresenta a esportista não como uma celebridade de tablóide ou um ser de inerente tristeza, mas sim como uma pessoa completamente tridimensional. Alguém que veio a descobrir muito cedo na vida que o mundo não é um lugar justo, e que precisou lutar contra isto desde então. Mesmo que muitas vezes, da maneira errada.
Robbie alterna com maestria os tons confiantes e histéricos de sua personagem, nunca tomando a saída mais fácil, o que com certeza teria transformado a produção em uma paródia ou tragédia, ainda que o filme contenha elementos de ambas. Margot Robbie em I, Tonya entrega uma atuação física e emocionalmente exigente, em que a atriz não dá um passo em falso sequer. Ela inclusive consegue um feito que mesmo as mais tradicionais biografias falham em conseguir: contar a história vista pela ótica do biografado da vez, de maneira tocante e genuína. Doa a quem doer.
I, Tonya ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, mas deve ser incluído na escala de lançamentos do país em breve.
https://www.youtube.com/watch?v=KuDQOMICfr0