Crítica: Sem Rastros (Leave no Trace) | 2018

Leave no Trace

Quem acompanha meus textos já percebeu que em algumas de minhas críticas, antes de discorrer sobre o filme propriamente dito, eu gosto de falar um pouco sobre a trajetória de algum dos nomes do elenco ou da produção envolvidos no projeto. Para falar sobre este ótimo drama Sem Rastros (Leave no Trace, EUA, 2018), uma das produções mais elogiadas no Festival de Sundance deste ano e exibida também no Festival de Cannes, é preciso antes falar um pouquinho sobre seu protagonista, o camaleônico ator Ben Foster. Foster começou na profissão bem jovem, em filmes como a segunda versão do herói da Marvel O Justiceiro (The Punisher, 2004), e o thriller Refém (Hostage, 2005), e não demorou muito para o ator passar a ser conhecido como o típico “rouba cena”, ou seja, aquele tipo de intérprete geralmente coadjuvante, que rouba a cena dos protagonistas das produções em que atua.

E ao longo dos anos, Foster realmente se tornou um ladrão de cenas profissional. Foi assim no drama Alpha Dog (2006), em que tirou os holofotes de Bruce Willis, Sharon Stone e cia; no violento horror 30 Dias de Noite (30 Days of Night, 2007); no western Os Indomáveis (3:10 to Yuma, 2007), em que roubou a cena de ninguém mais ninguém menos do que da dupla Christian Bale e Russell Crowe; e também no recente e extraordinário À Qualquer Custo (Hell or High Water, 2016), em que de novo ofuscou dois grandes nomes de Hollywood de uma só vez, Chris Pine e Jeff Bridges. Você pode conferir a crítica de À Qualquer Custo aqui mesmo no Portal do Andreoli.

Sem Rastros oferece uma rara oportunidade de acompanhar Foster em um papel onde não precisa roubar a cena de ninguém, já que é ele o protagonista deste bonito e relevante drama, dirigido pela talentosa e contundente cineasta Debra Granik, que com apenas alguns títulos no currículo, os dramas Down to the Bone (2004) e Inverno da Alma (Winter’s Bone, 2010) e o documentário Stray Dog (2014), discorre como poucos sobre as agruras da classe branca pobre e trabalhadora norte-americana, cujos membros são pejorativamente apelidados e conhecidos como “rednecks“.

Desde a ascensão de Donald Trump, estes cidadãos têm novamente aparecido à frente dos holofotes da enfraquecida economia norte-americana, e também das câmeras cinematográficas, em filmes como Logan Lucky: Roubo em Família, Projeto Flórida (The Florida Project), Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) e I, Tonya. Vale lembrar que as críticas dos filmes citados acima (com exceção de Logan Lucky), podem ser encontradas aqui mesmo no Portal do Andreoli. Nos filmes de Granik entretanto, ao contrário do que acontece nos filmes mencionados, o espectador não sente a distância entre a diretora e o meio que aborda. Granik não retrata seus marginalizados personagens como objetos de curiosidade ou comédia, escárnio ou piedade; a diretora os aborda de maneira direta, sem rodeios, mas carregada de compaixão.

Esta compaixão preenche cada frame de Sem Rastros, baseado no livro “My Abandonment“, do escritor Peter Rock, publicado em 2009, e cuja trama foca na forte relação entre pai e filha. No caso, o problemático veterano de guerra e viúvo Will (Foster), que insiste em viver afastado de tudo e todos, e a adolescente Tom (Thomasin Harcourt McKenzie), que junta-se ao pai neste afastamento, contra sua vontade. Apesar da narrativa do filme ser construída em torno do conflito – o desejo do pai em viver isolado que contrasta com a vontade da filha de viver em comunidade – o filme nunca aponta o que é certo ou errado, e entrega observações pertinentes sobre ambos os lados da questão. Granik constrói um incomum conto sobre o amadurecimento, em que uma adolescente declara independência gradualmente, com tato e consideração ao invés de rebeldia.

Quando vemos Will e Tom pela primeira vez, a dupla está vivendo em um parque florestal nos montanhosos arredores de Portland, Oregon. Granik retrata a rotina de sobrevivência da dupla nos detalhes; colhendo plantas e cogumelos para comer, recolhendo lenha para a fogueira, preparando ovos cozidos, pegando água da chuva para beber, etc. Pai e filha movimentam-se com facilidade pela área, e a casual intimidade de suas interações sugerem que eles vivem assim há muito tempo. O roteiro, adaptado por Granik e Anne Rosellini, não explica como ou porquê os dois foram parar ali, e ao longo da produção, a narrativa é movida pelo real motivo da escolha de Will em remover a si mesmo e à filha da sociedade. Teria ele feito isso por uma questão ideológica (uma rejeição aos excessos do consumismo capitalista) ou por auto-preservação (uma necessidade de paz depois dos traumas da guerra)?

Como os outros filmes de Granik, Sem Rastros não se esquiva, mas nunca bombardeia o espectador com o aspecto sombrio da luta pela sobrevivência. Ainda que o parque seja um ambiente desafiador, é também o paraíso particular de Will e Tom, e com o tempo, eles construíram uma vida funcional e até recompensadora no local. Quando Tom afirma em um dado momento do filme que ela e o pai nunca foram “sem-teto”, fica fácil de compreender o que ela quer dizer. Granik retrata seus personagens, mesmo os mais desesperados, com heroica decência. Os que tem pouco sempre são os mais generosos, e a diretora faz questão de ressaltar esta qualidade do espírito humano, numa demonstração clara do humanismo da cineasta, e de sua fé de que mesmo as instituições falidas da América estão repletas de pessoas fazendo o bem.

Um filme menos bem-intencionado talvez tivesse transformado Will em um tipo de tirano taciturno, que doutrina erroneamente sua filha e a priva da normalidade. No entanto, como é concebido aqui, Will é um bom pai, atencioso e devotado. Há equilíbrio e ternura em seu relacionamento com Tom, e seus laços são tão vividamente delineados que quando a polícia os retira de seu “lar” e os coloca em diferentes setores de um abrigo social, é possível sentir a dor e o pânico desta separação.

E ao longo de todo o filme, e das mudanças e andanças que envolvem o par de protagonistas, brilham as performances extremamente humanas e verossímeis de Foster e McKenzie. Já falei muito dos talentos de Foster no início desta crítica, e sua bela performance aqui é acompanhada pela firmeza e pose da jovem Thomasin McKenzie. A curiosidade de sua personagem parece aflorar nos olhos do espectador, que acompanha o surgimento de uma tremenda atriz (vale lembrar que a ganhadora do Oscar Jennifer Lawrence foi uma descoberta da diretora Granik).

Sem Rastros é mais um trabalho maduro e dramaticamente sutil de Debra Granik, que transcorre sem a pressa desnecessária que destrói tantos dramas promissores que surgem nos cinemas ano após ano. O suspense na produção não consiste em saber ou descobrir qual o destino final da dupla, mas sim em acompanhar como eles podem chegar lá sem partir o coração um do outro. O filme toma seu tempo, atrai o espectador para perto e o mantém lá. O público quer (precisa) saber se este pai e esta filha entenderão, assim como Granik entende, que se apegar à pessoas, ideias e modos de vida é uma expressão de amor, assim como desapegar-se também é.

Sem Rastros é uma das atrações do Festival do Rio 2018, mas não tem previsão de estreia oficial no Brasil, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

8 respostas

  1. Eu gosto de procurar críticas dos filmes que encontro pela internet aqui neste site, pois sei que, caso esse “crítico” chamado Eduardo elogie o filme, posso passar longe, pois geralmente é ruim pra caramba!
    Obrigado!

    1. Puxa que mau humor ein…. As vezes concordo as vezes discordo, dessa vez concordei com o critico sim…. mas pra que tanto odio einh Saramago….

  2. Há um detalhe bastante relevante no filme que passou despercebido em sua crítica: a principal motivação que levou Will a se isolar com sua filha na floresta. Logo no meio do filme, é revelada na manchete do jornal lida por Tom.

    Nas cenas seguintes é que nascerá o conflito entre os dois e a necessidade de escolher como vai viver.

  3. Faço o mesmo q José Saramago do comentário acima, mas quem me baseio para passar longe qdo a critica é boa é Rubens Edwald, porém este vi sem ler critica alguma e me arrependi, talvez o pior filme q já perdi tempo vendo, e acreditem, fiquei até o final esperando q algo acontecesse ou fosse esclarecido e nada, lixo total.

  4. Excelente filme!
    Muito bom seu texto sobre o filme.
    Muito bem observada a lista de filmes no tema de dar lugar aos “rednecks”, digo como referência, sem intenção ofensiva.
    Logan Lucky não vi, mas os demais são todos muito bons e tem a mesma sutileza emocional pra tratar de temas tão complexos.
    Eu gostaria também de enfatizar ele como contraponto ao Captain Fantastic, que romantiza e apresenta uma situação similar de maneira muito superficial e irresponsável.

  5. Acabei de assistir ao filme e estou absolutamente tocada! Que sutileza… sensibilidade. É dessa calma em tocar o filme que você comentou… aliás, ótima crítica! O final, sobre o apego a locais, modos de vida e pessoas é uma demonstração de amor e o contrário idem – exatamente isso! Sensacional!

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