Crítica: Rabid (2019)

Apesar de David Cronenberg ter deixado o horror para trás há muito tempo, ele estará para sempre ligado ao gênero que ajudou a estabelecer, com obras extremamente relevantes e chocantes. Cronenberg é, mais precisamente, o pai do body horror, vertente do gênero que discorre de maneira orgânica e explícita sobre as transmutações do corpo humano, sejam elas reais ou metafóricas. Um de seus primeiros esforços dentro do subgênero que praticamente criou foi Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid), lançado em 1976 e centrado em Rose (interpretada pela falecida atriz pornô Marilyn Chambers), uma mulher que desenvolve uma insaciável sede de sangue depois de uma cirurgia plástica experimental. Para complicar ainda mais, Rose se torna a responsável por dar início a uma violenta epidemia, uma vez que suas vítimas se transformam em enraivecidos zumbis.

42 anos depois, as diretoras (gêmeas) canadenses Jen e Sylvia Soska (do terror cult American Mary), fazem um tributo a Cronenberg com esta refilmagem homônima ao título original, Rabid (CAN, 2019), ao mesmo tempo em que tentam dar à história original uma roupagem moderna. Nesta versão, Rose é uma aspirante designer de moda que trabalha para Gunther (Mackenzie Gray), um renomado magnata do ramo. Interpretada pela bela Laura Vandervoort (de Jogos Mortais: Jigsaw, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), Rose é dócil, introvertida e interpretada como uma espécie de patinho feio. Sua irmã adotiva e melhor amiga, Chelsea (Hanneke Talbot), uma modelo que trabalha na mesma firma, tenta tirar Rose de sua concha ao manipular um encontro com o crush dela, Brad (Benjamin Hollingsworth), um fotógrafo do mundo da moda.

Quando Rose descobre a armação, ela foge envergonhada em direção à rua, o que resulta em um catastrófico acidente que a deixa terrivelmente desfigurada. Por sorte, um cirurgião plástico que está desenvolvendo um tipo de cirurgia experimental entra em contato com Rose, e oferece um tratamento revolucionário à partir de células-tronco que transforma Rose de um patinho feio em um belíssimo cisne. Porém, tal mudança traz uma coleção de bizarros efeitos colaterais, incluindo uma incontrolável fome por carne humana.

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A maior atualização que as irmãs Soska fazem na história criada por Cronenberg é dar a Rose a autonomia que ela nunca teve anteriormente. No filme original, Rose era uma figura trágica que nunca teve nada na vida. Nem mesmo uma opinião. Quando ocorre a tragédia em sua vida (no caso um acidente de moto provocado por seu namorado), que leva ao fatídico procedimento experimental (também intermediado pelo namorado), Rose luta desesperadamente para encontrar uma maneira de compreender o que está acontecendo com o seu corpo. As Soskas e Vandervoort dão a Rose ambição, uma voz firme, e uma forte bússola moral. É ela quem provocou seu acidente. É ela quem consente com o procedimento, e é ela quem move a história adiante. Esta atualização-chave na trama altera completamente a trajetória do filme; Rose não se sente como uma voz passiva nesta gigantesca epidemia que ocorre em torno dela. Rose é o epicentro do horror e o público assiste à tudo através de seus olhos. Enquanto que o original capturava a tragédia, as irmãs Soska miram na fúria.

O lado ruim, entretanto, é que tal mudança afeta os relacionamentos de Rose com os personagens ao seu redor, o que os torna extremamente subdesenvolvidos. Brad é o interesse romântico que tenta forçosamente adentrar a vida de Rose e consertar as coisas, não importa quantas vezes ela o afaste. Ela é tão eficaz nisso, que a questão emocional do relacionamento é praticamente nula, o que faz mal para a narrativa. O verdadeiro cerne emocional do filme é o relacionamento entre Rose e Chelsea, porém Chelsea tampouco é desenvolvida o suficiente para que o laço fraternal entre as duas ressoe com a força necessária.

Seja através de evidentes homenagens visuais ou sutis referências em alguns diálogos, as irmãs Soska prestam tributo ao trabalho de Cronenberg ao longo de todo o filme. De uma pequena menção ao filme Calafrios (Shivers, 1975), primeiro longa do diretor, até uma das cenas principais envolvendo uma cirurgia que parece tirada de Gêmeos: Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988), as gêmeas querem se certificar de que deixam bem claro o quanto ambas respeitam e amam o mestre do horror canadense. Este respeito e amor se estendem também ao Canadá, especialmente à cidade de Toronto. A cidade é uma peça-chave nesta refilmagem, e as Soska fazem questão de dar à cidade sua própria personalidade, o que se reflete também no elenco.

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Os efeitos de maquiagem se desenvolveram demais ao longo dos longos quarenta e dois anos que separam o filme original de seu remake, assim como as questões orçamentárias, que se alteraram bastante entre os dois filmes também. Ou seja, neste aspecto, há uma melhora significativa no remake. Os efeitos prostéticos e de criaturas à cargo da MASTERSFX e de Steve Kostanski (diretor do sólido The Void, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), mostra a raivosa epidemia de maneira bem mais sangrenta e cruel. Rabid apresenta algumas reviravoltas e expande sua mitologia de formas bem interessantes, ainda que nunca desenvolva tais formas como deveria.

Rabid é o filme mais bem executado da carreira das irmãs Soska até agora. Jen e Sylvia Soska arregaçaram as mangas e colocaram seus corações no projeto, que serve como uma verdadeira carta de amor à Cronenberg e ao Canadá. Muito desta atualização é canalizado através da transformação de Rose e do poder da história nos dias de hoje, e desemboca em uma conclusão que é uma excitante e aterradora homenagem ao body horror que deixa o público com mais perguntas na cabeça do que quando entrou na sala de projeção. Só o gore e os efeitos de maquiagem já valem o preço do ingresso, assim como a nova iteração de Rose, com sua imprevisibilidade, sua transformação e suas falhas. O horror do filme pode ser metafórico, mas sua protagonista não.

Rabid não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

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