Crítica: The Cured (2017)

Produção exibida no Festival de Toronto no final do ano passado, este The Cured (Irlanda, 2017), é mais um exemplar de um subgênero (os filmes de zumbi) que ao longo dos anos vem engolindo cultura contemporânea de tal maneira que ninguém poderia imaginar, principalmente quando os revolucionários filmes de George A. Romero passaram a capturar, à partir do final dos anos sessenta, a essência podre do conflito no Vietnã ou o consumismo exagerado, entre outras facetas emergentes da condição humana. Escrita e dirigida pelo estreante em longas David Freyne, esta contribuição aos filmes de zumbis coloca em pauta a questão: “o que acontece quando um zumbi tem a possibilidade de ser reintegrado à sociedade?”

Esta é a principal preocupação da protagonista sem-nome do filme (a canadense Ellen Page, de A Origem e Juno), uma viúva que recebe em sua casa o seu cunhado, Senan (Sam Keeley, de No Coração do Mar, 2015), que anteriormente esteve infectado com o vírus que o transformou em um morto-vivo, e que agora, curado (ou diríamos ressurreto?), luta para reconstruir sua vida frente ao preconceito social e o fardo de ter de esconder segredos tão estraçalhadores sobre sua prévia condição.

Nenhum gênero é tão alegórico quanto o horror quando o assunto é subtexto. Filmes sobre vampiros sempre tiveram a alegoria da AIDS borbulhando por baixo da superfície, e historicamente, os melhores filmes de zumbis também criticaram alguns momentos de importância cultural. Então, intencionalmente ou não, The Cured bem poderia ser o primeiro filme de horror pós-Brexit (para quem não está familiarizado com o termo, “Brexit” é o termo usado normalmente como referência à saída do Reino Unido da União Europeia).

Fazer uma leitura metafórica do filme é inevitável; substituindo os “curados” do filme por imigrantes, vistos como excluídos procurando por asilo, ao mesmo tempo imbuindo os locais com o medo do desconhecido. Outra alegoria completamente cabível? Pensar na narrativa de The Cured como um ataque ao esquema de recolocação de condenados na sociedade, quando estes saem dos meandros do sistema judiciário e criminal. The Cured possibilita várias leituras para sua narrativa, mas o espectador ainda pode desfrutar a produção como aquele tipo de suspense que pode perfeitamente ser apreciado como um thriller sobrenatural sem compromisso.

Como acontece na grande maioria das narrativas sobre zumbis hoje em dia, os espectros são mero artifício para desenvolver os personagens (vivos) e seus temas (isso fica bem evidente no atual momento da série The Walking Dead por exemplo, onde o vilão Negan bota mais terror sozinho do que qualquer horda gigantesca de zumbis). Aqui, o “Negan” da vez encarna a figura Connor (Tom Vaughn-Lawlor, da série Peaky Blinders), que rejeitado por sua família devido aos horrores que perpetrou enquanto zumbi, assume o comando de um grupo de ativistas/milícia cujos atos são cada vez mais agressivos e cada vez menos progressivos, onde Connor estabelece-se como uma figura muito mais assustadora do que qualquer morto-vivo que dá as caras no filme.

Falando mais um pouquinho do elenco, apesar de não ser nem um pouco fã da atriz Ellen Page, admito que ela está bem no filme, no difícil papel de uma mãe solteira que está lidando com o luto, e cuja sobriedade da personagem acrescenta força à incômoda quietude que permeia o filme, até que chegue a inevitável carnificina.

Infelizmente, apesar de todas as boas ideias/analogias possíveis para sua narrativa e da boa vibe que remete ao estilo utilizado pelo diretor Danny Boyle em seu próprio (e ótimo) filme de zumbis, Extermínio (28 Days Later), lançado em 2002, The Cured não consegue exatamente encontrar sua própria identidade. Não é um filme que merece a exclusão imediata por parte do espectador, mas ainda assim a produção tem um ar de episódio piloto de um seriado que poderia melhorar muito com o tempo. Tudo é enquadrado um tanto sem imaginação, e executado com pouco brilho, o que impede que o espectador realmente sinta seu sangue ferver. E isso, para um filme de terror, é caixão e vela preta.

The Cured ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

Uma resposta

  1. Discordo dessa frase: “Filmes sobre vampiros sempre tiveram a alegoria da AIDS borbulhando por baixo da superfície…” Drácula de Bram Stoker teve esse estigma, mas foi algo alardeado para divulgar o filme numa época em que se discutia com fervor a epidemia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens