Crítica: Projeto Flórida (The Florida Project)

Em 2015, o jovem diretor Sean Baker dirigiu o drama Tangerine, filme que ficou famoso pelo fato de ter sido todo filmado com um aparelho celular iPhone 5. Mas o filme, que narra as desventuras de dois travestis pela noite de Los Angeles, é muito mais do que apenas uma vedete da tecnologia moderna. Delicada sem deixar de ser engraçada, Tangerine foi um dos bons filmes lançados naquele ano, e com certeza um dos mais humanos.

Não é surpresa para mim, portanto, que o retorno de Baker às telonas tenha sido com este Projeto Flórida (The Florida Project, EUA, 2017), uma produção tão emocionalmente grandiosa, que descrevê-lo sem utilizar-se de artifícios sentimentais é praticamente impossível. Projeto Flórida é um daqueles filmes que desafiam seu próprio plot através de sua execução. Trata-se de uma produção de pequenos detalhes que se combinam para dar forma à algo maior, que funciona de maneira bem semelhante ao vencedor do Oscar de Melhor Filme deste ano, o belo Moonlight: Sob a Luz do Luar, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli.

Assim como o citado filme de Barry Jenkins, o filme de Baker alcança muito de seu brilhantismo através dos detalhes, por muitas vezes específicos. Sim, é uma produção de linhagem bastante comum sobre uma mãe solteira e sua filha que estão com os pés na lama, mas que é contada de maneira que abraça seus detalhes ao invés de tentar conquistar o público de maneira dramaticamente pedante. Baker trabalha de maneira cuidadosa as verdades específicas de seus protagonistas e suas vidas, e é exatamente esta honestidade que torna Projeto Flórida tão poderoso. Trata-se de um filme notável, e sem dúvida um dos melhores do ano.

O motel Magic Castle é o tipo de lugar que a maioria das pessoas nem sequer nota, à medida em que passam apressadas por ele em direção aos parques da Flórida. Localizado por entre motéis baratos, lojas de bebidas e armadilhas para turistas, entre outros estabelecimentos, o Magic Castle abriga todo tipo de gente, desde turistas procurando algo barato, até a classe trabalhadora que praticamente transformou o local em sua moradia definitiva. É neste lugar que Baker nos apresenta às suas crianças protagonistas da trama, os melhores amigos Moonee (Brooklynn Prince), e Scooty (Christopher Rivera).

Numa típica brincadeira boba de criança que não tem mais o que fazer, Moonee e Scooty sobem até uma das sacadas do motel, apenas para cuspir em um dos carros estacionados lá embaixo. Para eles, é apenas mais um dia como qualquer outro. E depois que a dona do tal carro fica brava com a situação, Moonee e Scooty acabam ganhando uma parceira de crime na neta da mulher, a doce Jancey (Valeria Cotto).

Mesmo situando grande parte de sua narrativa no dia-a-dia destas crianças precoces que residem no motel, Projeto Flórida é muito mais do que apenas mais uma produção que idealiza a juventude e observa a pobreza com os olhos confortáveis de quem está de fora. Baker não perambula por nenhum dos dois recursos narrativos, e é no equilibrado tom da produção que o diretor faz com que seu filme encante o espectador.

O filme basicamente passeia pela rotina de uma criança muito especial, vivaz, criativa e engraçada, do tipo que coloca um peixe morto na piscina do motel para tentar ressuscitá-lo, e que desliga a energia do motel inteiro, apenas para ver o que acontece. Não há nada de particularmente especial na rotina de Moonee, cinematograficamente falando. Mas Baker garimpa ouro dos pequenos momentos e detalhes da vida da criança, que parece inocente, mas que na verdade sabe muito mais do que os adultos à seu redor. Ajuda também o fato de Baker ter descoberto uma futura estrela de Hollywood em Brooklynn Prince, que entrega uma das melhores interpretações infantis dos últimos anos. A garota é tão genuína, que faz com que o público esqueça que está observando uma personagem, embarcando completamente em sua vida, como se fosse verdade.

Ao longo do filme, outros personagens vão sendo apresentados, e eles ajudam a traçar ainda mais o perfil de Moonee, como por exemplo sua mãe, Halley (a estreante Bria Vinaite), que está escorregando socialmente e economicamente, sempre lutando para pagar o aluguel, conseguir um emprego, e para não precisar mais vender perfumes nos estacionamentos de hotéis chiques de Orlando. Quem percebe esta queda livre de Halley e sua filha é o gerente do hotel, Bobby (Willem Dafoe, sempre ele), em mais uma performance notável de sua longa e prolífica carreira. Mesmo aparecendo de maneira um tanto episódica ao longo da produção, Dafoe dá dimensão e profundidade ao personagem, que mesmo já tendo hospedado dezenas de Halleys e Moonees ao longo dos anos, ainda não consegue se desligar totalmente das pessoas que se hospedam nos quartos de seu hotel.

Baker e seu co-roteirista habitual Chris Bergoch, são extremamente eficazes em adicionar realismo e veracidade ao roteiro da produção. A narrativa deixa bem claro para o público, desde o início, de que não há romantismo nas vidas destas pessoas, e ainda assim, Baker consegue esquivar-se da apelação desnecessária e da exploração da pobreza para arrancar lágrimas superficiais de seu espectador. E como mencionei anteriormente, é este equilíbrio narrativo que nunca descamba para um polo ou para outro que faz o filme funcionar tão bem, e que culmina em uma sequência final de impactante beleza, que não será esquecida tão cedo.

Alguns dos melhores filmes ao longo da história cinematográfica alcançaram a grandeza apresentando às plateias personagens profundos e multidimensionais. É como se conhecêssemos o Chiron do citado Moonlight, ou o Lee do belo Manchester à Beira-Mar, outro concorrente ao Oscar entregue este ano. Moonee, Halley e Bobby alcançam o mesmo tipo de “existência além do filme”, que nos ensina a olhar para o próximo com outros olhos, esquecendo o estereótipo e abraçando o ser humano, que tanto precisa de um consolo. É preciso um filme muito especial para nos causar esta reflexão. Projeto Flórida é este filme.

Projeto Flórida estreia nos cinemas brasileiros no dia 01 de Março.

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