Fábio Muniz: Você vem comigo?

– “Papai, você pode comprar um sanduíche para ele?” Disse a Sophia enquanto camnhávamos e vimos uma pessoa sentada na calçada em frente da padaria pedindo dinheiro.

– “Filha, eu acredito que ele é a mesma pessoa que um dia ofereci um sanduíche e por incrível que pareça, ele não aceitou”.

– “Como assim, papai?”.  A Sophia não entendendo, seguiu me perguntando os porquês.

– “Eu me lembro que quando saímos em grupo para distribuir sanduíches e café na rua, ele não aceitou porque me disse que gostaria de receber dinheiro”. Expliquei para a Sophia com muita tristeza no coração.

– “Mas papai, você às vezes dá dinheiro para quem te pede?” Perguntou a Sophia com toda a inocência de uma criança que confia no seu pai e tem vontade de aprender.

– “Olha filha. Sinceramente, o papai e a mamãe evitam dar dinheiro. De vez em quando, a gente dá dinheiro para alguém que está pedindo, mas normalmente antes de entrar no supermercado perguntamos para a pessoa que está sentada na porta se ela necessita de algo, ou até mesmo vamos juntos na padaria com ela e pedimos para escolher alguma coisa para comer”.

Bom dia à todos vocês!

Eu e a Sophia tivemos este diálogo há duas semanas…

No meio de tanta necessidade, tanta carência, tanta falta de tudo, e tanta desigualdade, a pergunta desde sempre é: “O quanto eu posso fazer diante de tamanha calamidade? ” E mais ainda: “Como posso saber quem está falando a verdade ou não? ”

Eu cresci em São Paulo. Eu cresci e aprendi logo cedo com os meus pais o significado de ajudar o pobre, o menos favorecido, o marginalizado, o indivíduo que perdeu tudo e quase todos, senão todos…

De modo que inúmeras vezes eu vi mamãe me pedindo para correr dentro de casa e pegar uma maçã, fazer um pão com mortadela ou dar um prato de arroz para quem estava batendo na porta pedindo comida.

Na semana passada a minha esposa nos deu uma lição de generosidade e carinho. Um senhor estava se aproximando de nós quando saíamos do parque, e ela disse:

– “Senhor, senhor!!! Este é o meu esposo! ” Ela acenou para este senhor de uns 60 anos de idade, mal vestido que carregava uma placa pedindo ajuda.

– “Olá senhora, tudo bem? Prazer em conhecer o senhor. ” Ele começou conversando com a minha esposa e carinhosamente se dirigiu para mim com um sotaque muito forte em Francês confirmando a minha impressão de que se tratava de algum refugiado ou imigrante sem trabalho.

– “Vou já.. já.. correr na padaria e trago o teu sanduíche que prometi”. A minha esposa lhe disse enquanto o mesmo senhor sorria para nós dois com uma gratidão profunda estampada no seu rosto.

No entanto, a vida e a experiência me ensinaram que é uma falácia afirmar que todo pobre é humilde, e todo rico é orgulhoso. Eu conheci gente rica, muito humilde. E a minha primeira experiência com o “pobre orgulhoso” foi no centro de São Paulo há quase 25 anos atrás. Eu me lembro até hoje, quando nos aproximamos, eu e um grupo de voluntários, para ajudar alguns moradores de rua e começamos a conversar.

– “Olha! Senhor…” Eu comecei um processo de aproximação com muito carinho para que ele não se assustasse.

– “Sim, diga-me…” O morador de rua me respondeu vagarosamente enquanto caminhava na minha direção.

– “Eu tenho alguns sapatos comigo. Estamos doando roupas e temos comida também”. Eu segui dizendo-lhe…

– “Eu preciso de sapatos! ” Ele me respondeu enquanto olhava para os seus pés sem nenhum sapato.

– “Claro. Eu tenho estes sapatos. Parece que cabem em você”. Eu sorri e quando lhes entregava…

– “Não, não quero.” Respondeu o homem com uma cara de “não muitos amigos”…

– “Meu senhor. São novos estes sapatos”. Eu comecei a não entender muito bem o que estava acontecendo.

– “Eles não são vermelhos. Eu quero sapatos vermelhos”. O homem me respondeu já me dando as suas costas e se retirando.

Certamente Lyon não é São Paulo onde em cada semáforo existe alguém pedindo dinheiro, em cada viaduto existe alguém sentado ou dormindo. Em Lyon, o número de mendigos é infinitamente menor do que o número de pedintes de São Paulo, mas eu vejo imigrantes e refugiados sem a oportunidade de trabalhar quase todos os dias porque não falam o idioma e precisam pedir ajuda no semáforo, no metrô, nas ruas. Crianças com as suas mães esperando a generosidade de alguém que passa. Crianças sem as suas mães esperando um olhar afetuoso e cheio de misericórdia de alguém que possa ajudar. Gente que eu olho e toda hora me pergunto, “Ajudo este ou aquele? ”

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Você já passou por algo similar?

Certamente sim.

Hoje, a minha esposa e eu, temos entre 10 e 12 projetos que envolvem 6 idiomas, palestras e conferências, atividades com música, encontros com famílias multi-culturalmente híbridas, trabalhamos como pontes culturais entre os franceses e estrangeiros, somos parceiros de instituições eclesiásticas tais como: igrejas protestantes e católicas, além dos nossos projetos que envolvem ateus, agnósticos, cristãos ou muçulmanos.

Há projetos desde ir para as ruas com voluntários e recolher o lixo das calçadas para depois nos reunirmos, tomarmos um café e praticarmos Francês, Inglês, Espanhol ou Japonês, passando por distribuição de sanduíches aos moradores da rua, experiências de culturas cruzadas como o nosso bate-papo mensal em Japonês enquanto ouvimos algum japonês imigrante falando em Inglês da sua experiência de morar na França:-), até walking tours onde eu mesmo dou as boas vindas e as dicas da cidade aos novos residentes de Lyon. No entanto, sempre quis começar um projeto para ajudar os refugiados. A questão era:  “Como ganhar a confiança deles e mostrar que não há nenhum interesse por trás do nosso interesse único, sincero e último de ajudá-los na integralização da cultura francesa?” 

De volta ao meu walking tour

Pois bem, em um destes walking tours, uma garota trouxe dois refugiados. Um deles do Sudão que não falava nada em Francês….

Imediatamente, eu pensei num projeto. Porque não convidar alguns franceses para ser voluntários e gastar uma ou duas horas por semana ajudando imigrantes e refugiados para aprender o Francês? Por que não?

Eles poderão se revezar entre eles mesmos cada sexta-feira. Ora, não será pesado para ninguém! Já tenho um local onde posso usar como centro cultural. É um local maravilhoso e totalmente gratuito. É um local fruto de uma parceria com algumas igrejas que observaram como eu e a Johnna estávamos desenvolvendo atividades na cidade e servindo a comunidade e, portanto, nos ofereceram o espaço gratuitamente. Por quê não? Pensei eu…

Quem poderia me ajudar?

A questão seguinte foi:  “Como encontrar estes voluntários? ”

Pois bem, eu e a Johnna temos 2 grupos no meetup.com que abrigam quase 4.000 membros que participam de distintos eventos que organizamos. Na realidade, criamos uma comunidade onde eu pessoalmente devo conhecer entre 10 ou 15 novas pessoas ao mês através de todas estas atividades que desenvolvemos.

Isto posto, resolvi perguntar para alguns destes participantes ativos de vários dos nossos projetos se poderiam entrar comigo neste “novo projeto”. Aliás, muitos destes membros e participantes ativos se tornaram os nossos amigos, frequentam a nossa casa, vamos aos parques juntos, passam o domingo conosco, etc.

Resumindo: Em dois dias eu tinha 6 voluntários franceses. Um grupo de 4 estudantes para começar. Aliás, dos 4 estudantes, 2 deles eram refugiados que não falavam francês. E os outros dois imigrantes com nível excelente para conversação. Sem contar que o local, como já havia dito anteriormente, estava completamente disponível todas às sextas-feiras das 12:00h às 14:00h.

E mais ainda: criamos um grupo no WhatsApp onde os próprios voluntários franceses começaram a trocar as suas experiências e compartilhavam as metodologias e a melhor didática para se prepararem não só pedagogicamente, mas emocional e psicologicamente diante de um grupo de estudantes tão plural no conhecimento da língua francesa tanto quanto no aspecto emocional, cultural e familiar.

E talvez você me pergunta: “Fábio, porque você está escrevendo isto hoje? ”

Simplesmente porque na última sexta-feira tivemos pela primeira vez dois grupos e duas sessões.

O primeiro grupo com um voluntário estava focado em conversação das 12:00h às 13:00h. O Segundo grupo com dois voluntários estava focado na gramática e conversação básica francesa das 13:00h às 14:00h.

Tudo acabou de começar. Não há mais de dois meses. E tudo tem funcionado tão orgânica e espontaneamente que estou surpreso. Surpreso com tanta generosidade. Surpreso com o carinho e a dedicação de tanta gente. Surpreso com o esforço de cada pessoa que conheci como membro de um grupo, e que depois se tornou um participante, e posteriormente se tornou um amigo, e hoje, com muita alegria se tornou um parceiro de projeto. Ora, o meu coração se enche de gratidão diante de tanta pluralidade e diversidade ao ver o que um espiral crescente de altruísmo pode construir.

Por exemplo: Os países que já passaram pelo nosso encontro e foram representados entre voluntários e/ou estudantes são: Brasil, Estados Unidos, Síria, Guiana Francesa, Colômbia, Líbano, Sudão, Nigéria, Azerbaijão, Espanha, Mauritânia, Suíça, Argélia e Marrocos.

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Isto posto, eu gostaria de te dizer que inúmeras vezes sou visitado por um sentimento de que gostaria de fazer mais, ajudar mais, abrigar mais, acolher mais…No entanto, sei que este sentimento “messiânico” infelicita e perturba até mesmo o humano mais humano do planeta. E, portanto, a nossa missão, digo nossa, porque ela é minha e tua também; ela é tua e minha também: ela é a nossa missão…

A nossa missão é ser agentes de reconciliação e construir pontes entre os seres humanos dentro de um mundo tão polarizado e dividido. De modo que se sairmos na rua neste momento, encontraremos este contexto polarizado e dividido. Não nos faltam oportunidades para abraçar esta missão. Você vem comigo? Você tem coragem? Você está disposto?

Eu já estou terminando. Antes de finalizar, gostaria de falar sobre dois personagens que talvez nos inspirem neste momento.

Pois bem, o primeiro destes personagens nos deixa uma frase extraordinária e nos põe na rota da existência sem crises megalomaníacas, mas com a consciência de poder fazer ainda que seja o “pouco” do ponto de vista humano, mas paradoxalmente, o “pouco” é relevante e faz parte de um “todo” tão maior e orgânico que se torna imensurável até mesmo no horizonte imediato.

Madre Teresa de Calcutá disse, “Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota. ”

Talvez você me diga. “Fábio, você disse duas pessoas. Qual é a segunda? ”

Eu te digo. Quando eu estive pelos lados da Polônia há quase 10 anos atrás, eu não poderia deixar de visitar a fábrica de Oskar Schindler. Você se lembra do filme “A lista de Schindler”. Você deve conhecê-lo. Se você nunca assistiu ou não se lembra do filme, você precisa assisti-lo.

A parte mais fascinantemente chocante do filme fica no final. Schindler começa a dizer:

“Quanto uma pessoa vale…? Eu poderia ter conseguido mais. Eu poderia ter conseguido mais. Eu não sei. Se eu ao menos… Se eu tivesse feito mais dinheiro… Eu gastei tanto dinheiro… Eu não fiz o bastante! Este distintivo. Duas pessoas. Duas pessoas a mais. Ele teria me dado duas por isso, no mínimo. Eu poderia ter conseguido mais uma pessoa… e eu não fiz isso! Este carro… Por quê eu fiquei com ele? Dez pessoas logo ali. Dez pessoas. Dez pessoas a mais…”

 

https://youtu.be/UZpODwFpy-I

 

Ah! Esqueci de dizer que a minha esposa correu na padaria enquanto eu fui para casa e entregou ao senhor de uns 60 anos um belo sanduíche feito com uma deliciosa baguete francesa. Quando nos vimos novamente em casa ela me disse:

“Fábio, aquele senhor calça o mesmo número que você. Ele ficou muito feliz com o sanduíche.”

– “Que bom que ele gostou do sanduíche. ” Eu lhe respondi com alegria.

“Olha, já que ele calça o teu número, eu lhe prometi que você separaria alguns sapatos. Você pode fazer isto, por favor? ”

Já está feito, separados e colocados na porta de entrada do nosso apartamento.:-)

Qual será a tua “gota” nesta semana? …E que fará com que “o mar não se torne menor” sentindo falta dela caso você não a coloque dentro no próprio mar.

Coragem! O mundo precisa de você e da tua atitude generosa e compreensiva.

Kazimierz é o bairro judeu de Cracóvia que está repleto de memórias. O chamado “gueto judaico” se encontra no distrito de  Podgorze, que fica muito perto de Kazimierz. A fábrica de Schindler também fica em Podgorze e você pode visitar um belo museu onde vai mostrar como era a vida durante aquele período difícil.

Steven Spielberg usou estas áreas para produzir “A Lista de Schindler”. É em Kazimiers que se encontram as sinagogas mais importantes da Cracóvia.

La Causerie é o espaço que utilizamos para organizar muitas das nossas atividades. A nossa reunião para o aprendizado da língua francesa com voluntários, refugiados e imgrantes acontece todas as sextas-feiras.

 

Merci! Até a próxima!

Fábio Muniz

Lyon, França

 

**O conteúdo e informação publicado é responsabilidade exclusiva do colunista e não expressa necessariamente a opinião deste site.

Imagens 01, 02 e 03: Freepik

Imagem 04: Daniel Castellano / SMCS

Imagem 05:  A melhor coisa da minha vida

Imagem 06: Arquivo pessoal do colunista / Foto real do projeto no La Causerie

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Imagem 08: H Caetano

Imagem 09 e 10:  Arquivo pessoal do colunista

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Respostas de 7

    1. Muito bem, Fábio! Texto leva-nos a refletir sobre nossas responsabilidades sociais, cristãs! Morro em São Paulo a 57 anos, conheço bem essa realidade e já vivi e vi muitas e muitas cenas como as que você escreveu, é triste nossa realidade mundial hoje, mas aqui tanto como em Lyon nunca deixamos de ajudar e assim prosseguiremos sempre. Somos a gota de água no oceano!

  1. As vezes nao fazemos algo pensando q é pouco, para nós pode até parecer,mas para quem recebe a ajuda é alguma coisa grande, que as vezes eles nem compreendem. Tenhamos todos a coragem de ajudar, pouco ou muito como pudermos.
    Obrigado por compartilhar os exemplos. Abraco,

  2. Excelente trabalho. O Espírito Santo os dirige sempre. Prossigam com Fé e intrepidez conforme a Vontade do Senhor. Sejam fortalecidos em Jesus!

  3. Obrigado pelas pílulas de generosidade e graça Fábio.
    De fato, como eu tive a oportunidade de caminhar algum tempo ao seu lado, percebi que a generosidade e o amor ao próximo sempre foram marcas indeléveis no seu ordenamento comportamental.
    Lembro-me que nos últimos tempos de €spanha, nós moramos juntos e por várias vezes qdo eu chegava em casa e vc estava jantando, vc sempre fazia questão de compartilhar do seu jantar cmigo, mesmo sendo em pouca quantidade, e eu recusando por perceber que a porção éra o suficiente pra vc, todavia mesmo assim vc insistia e me servia a metade do seu jantar e juntos comíamos e filosofávamos e eu percebia em seus olhos a sua satisfação qdo eu aceitava a sua oferta e o bem que isto causava em vc;
    Obrigadão pelas lições de gratidão…
    Abração desde o coração do Brasil

  4. Praticamente qualquer pessoa que tem o privilégio físico e financeiro de ler os seus textos aqui podem fazer algo para o próximo. E por isso mensagens como essa aqui nos inspiram a pensar como podemos fazer mais. Atualmente ajudo o próximo com contribuições financeiras apenas, mas tenho muita vontade de ajudar pessoalmente. Espero ter uma oportunidade logo logo. Continue nos iluminando com os seus textos. Obrigado, Chico.

  5. Praticamente qualquer pessoa que tem o privilégio físico e financeiro de ler os seus textos por aqui podem fazer algo para o próximo. E por isso mensagens como essa nos inspiram a pensar como podemos fazer mais. Atualmente ajudo ao próximo com contribuições financeiras apenas, mas tenho muita vontade de ajudar pessoalmente. Espero ter uma oportunidade logo logo. Continue nos iluminando com os seus textos. Obrigado, Chico.

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