Para quem não conhece muito a nova cena do cinema de crime americano, talvez o nome Jeremy Saulnier não tenha significado algum. Quem já ouviu este nome, entretanto, sabe que trata-se de um dos nomes mais promissores a surgir na cena cinematográfica nos últimos anos. Aos 42 anos, Saulnier é um dos diretores e roteiristas mais badalados atualmente, graças aos seus dois trabalhos anteriores. Sua estreia foi em 2014, com o forte thriller sobre vingança Ruína Azul (Blue Ruin), filme que chamou os holofotes da crítica sobre ele. Em 2016, Saulnier voltou com força total com o feroz Sala Verde (Green Room), thriller extremamente violento que definiu Saulnier como um cineasta de gênero.
Agora em 2018, o diretor praticamente completa uma trilogia involuntária com este Noite de Lobos (Hold the Dark, EUA, 2018), nova produção Netflix exibida no TIFF, o festival de Toronto, e onde o cenário natural do Alaska é transformado em um vasto showcase de diferentes gêneros. Ao mesclar um cativante drama de sobrevivência com sangrentos tiroteios e elementos sobrenaturais, Saulnier solidifica uma estética onde vários tipos de filme são reunidos em uma só produção. Tal mistura nem sempre funciona tão bem. Desta vez, a abordagem do diretor rende uma narrativa um tanto confusa, mas Saulnier e seu roteirista e colaborador habitual Macon Blair, mantêm uma atmosfera sombria e um ritmo rápido, que dá uma cara própria e original ao filme.
Noite de Lobos apresenta uma premissa que soaria absurda se não fosse levada bastante à sério: Medora Stone (a bela Riley Keough, de Docinho da América, Ao Cair da Noite, Under the Silver Lake e A Casa que Jack Construiu, cujas críticas estão todas disponíveis aqui no Portal do Andreoli), escreve para o especialista em lobos Russell Core (o ótimo Jeffrey Wright, da série Westworld), para relatar que seu filho foi arrastado e levado embora por um grupo de bestas famintas e que ela quer vingança. Vivendo em um remoto assentamento ao norte do estado, Medora não passa muita confiança (ou mesmo sanidade) para Russell, entretanto, como sua filha a quem não vê há muito tempo reside em Anchorage (município próximo do local), ele decide aceitar o trabalho usando como desculpa a visita para sua filha.
O que ele não imaginava é o quão distante a localidade onde Medora reside está das regiões mais populosas do estado. (“Aquela cidade,” Medora diz à Russell, “não é o Alaska.”) e não demora para ele se encontrar aprisionado na estranha residência da mulher, mais preocupado em ajudá-la com o luto, do que propriamente em caçar os predadores que levaram sua criança. O marido de Medora está servindo no Iraque, o que piora ainda mais a situação da mulher.
O primeiro capítulo do filme tem a assombrada elegância de uma história de fantasmas à moda antiga, onde Russell passa a noite na casa de Medora e testemunha seu sonambulismo e um inexplicável comportamento noturno. Deste ponto em diante, Noite de Lobos se aventura em uma série de inesperadas direções: Russell se dirige à mata ao redor da região e testemunha o comportamento estranho dos lobos, e quando retorna à vila descobre que uma nova tragédia aconteceu, e que Medora está agora desaparecida.
De repente, Saulnier abandona o Alaska e joga a narrativa para o Oriente Médio, onde o marido da mulher desaparecida, Vernon (um sinistro Alexander Skarsgard, da sci-fi Mudo, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), se envolve em um angustiante duelo que resulta em sua ida para casa. Esta sequência tensa e perturbadora estabelece Vernon como um assassino silencioso com seu próprio código moral e uma perigosa instabilidade psicológica.
A trama volta ao Alaska, e o filme mais uma vez se desenrola em diferentes direções, com uma série de brutais assassinatos que chamam a atenção do chefe de polícia local, Donald (James Badge Dale, de Guerra Mundial Z e Homem de Ferro 3), o que faz com que Noite de Lobos acelere o ritmo e adentre o gênero ação, transformando a narrativa do filme mais uma vez. No centro de todas estas reviravoltas, Russell é empurrado em um mistério labiríntico que envolve folclore local e até possessão demoníaca. Entretanto, Saulnier sabiamente joga com a percepção do público, que fica dividido entre acreditar no sobrenatural ou na turbulência do stress pós-traumático e da alienação que leva as pessoas à margem da sociedade a agir de maneiras horríveis.
Mais abstrato que os trabalhos anteriores de Saulnier, Noite de Lobos evita as explicações fáceis, mas o diretor cria uma mistura tão chocante, violenta e eficiente, que tais explicações no fim das contas não importam. Pelo menos não tanto quanto a frenética instabilidade emocional do insípido cenário de neve e isolamento. Com o vento uivante dominando a trilha-sonora e com as intermináveis montanhas brancas espreitando nos cantos de cada tomada da fotografia de Magnus Nordenhof Jønck (do drama Lean on Pete, cuja crítica também está disponível aqui no Portal), Noite de Lobos desenvolve uma aura pós-apocalíptica única, que ressalta a desolação da última fronteira dos Estados Unidos.
Em seu núcleo, o filme se aprofunda no martírio de um casal que aos poucos desistiu da humanidade. Nem sempre as coisas fazem muito sentido, mas a abordagem furiosa do diretor amplifica o suspense a cada curva da trama. Como resultado, Russell torna-se o norte da trajetória da narrativa, e assim como na série da HBO Westworld, Wright brilha e rouba o filme para si. Encontrando-se de frente para um mundo sobrecarregado de desenvolvimentos bizarros e inexplicáveis, seu personagem se torna o “herói” da história, que luta para encaixar as peças de um mundo mitológico através das ferramentas práticas à sua disposição. À medida em que Noite de Lobos dirige-se ao seu final de certa forma insatisfatório, o personagem de Wright consiste em um pilar confiável de um filme inquietante, que não tem paciência com ninguém à procura de respostas fáceis, e que consegue ser tão implacável quanto a natureza mortífera que retrata.
Noite de Lobos estreou (28/09/18), no catálogo da Netflix.
Imagem: Eduardo Kacic