Glass Onion repete a fórmula do primeiro filme e acerta mais uma vez
No decorrer do isolamento social implementado durante a pandemia da Covid-19, toda a indústria do entretenimento precisou se reinventar. Isso porque, até então, a maioria das pessoas não entendia o lazer como uma necessidade básica, e sim como um privilégio. Esse entendimento, todavia, foi caindo por terra à medida que o ato de precisar permanecer em casa por tempo indeterminado significava, também, precisar buscar dia após dia novas formas de se entreter para tentar aliviar o medo, ansiedade e desesperança.
Foi nesse contexto complicado que um jogo eletrônico de mistério, com premissa simples e habilitado para multijogadores, ganhou a internet. Among Us reúne vários astronautas em uma nave espacial isolada, em que cada astronauta é um jogador; dentre eles, um dos jogadores é, na verdade, um impostor disfarçado que precisará sabotar a missão assassinando todos os outros. Mas o que, exatamente, tudo isso tem a ver com cinema?
O jogo, que a princípio não parece ter nada a ver com o universo cinematográfico, tem sua premissa inteiramente baseada em um subgênero do suspense conhecido como whodunit ou whodunnit. A palavra vem do inglês ‘who done it?’, que significa literalmente ‘quem fez isso?’; ela é utilizada para designar tanto produções literárias quanto cinematográficas, em que alguém comete um crime e a trama principal envolve a investigação para descobrir quem foi o autor dele. É o tipo de narrativa vista nos romances de Agatha Christie, por exemplo.
Mas, se Christie tem Hercule Poirot, Rian Johnson tem Benoit Blanc. Em 2019, o diretor de Star Wars: Os últimos Jedi e Ozymandias, episódio mais visto e bem avaliado da série ‘Breaking Bad’, lançou um filme que, mais tarde, se tornaria um dos mais icônicos de sua filmografia. ‘Entre Facas e Segredos’ se tornou sucesso imediato de público assim que chegou aos cinemas, e ficou conhecido por trazer um mistério instigante, que convida o espectador a tentar descobrir a identidade do assassino equilibrando suspense e comédia.
Nele, o genial e um tanto excêntrico detetive Benoit Blanc (Daniel Craig), considerado o melhor do mundo, é contratado para investigar a morte do famoso escritor Harlan Thrombey (Christopher Plummer) que ocorreu logo após seu aniversário de 85 anos sob circunstâncias misteriosas. Dentre funcionários da casa e familiares, Blanc logo percebe que todos podem ser considerados suspeitos, uma vez que cada um tinha um motivo diferente para querer o velho romancista morto. A história também é contada através de um elenco de peso, que possui nomes como Ana De Armas, Toni Collette, Chris Evans, Jamie Lee Curtis e Joseph Gordon-Levitt.
‘Glass Onion – Um Mistério Knives Out’ repete a fórmula do primeiro filme quase que por completo: um elenco estelar, personagens complexas, uma festa de aniversário, mistério com um toque de sátira, crime com vários suspeitos e somente um assassino. O perigo mais comum de repetir elementos para criar algo novo é o de cair na mesmice, mas felizmente, esse segundo filme da franquia o supera trazendo personagens tão interessantes quanto as do primeiro, crítica social e doses certeiras de alívio cômico.
A sequência se passa durante a pandemia no ano de 2020. Dessa vez, Benoit Blanc recebe um convite inesperado para comemorar o aniversário de um milionário do ramo da tecnologia chamado Miles Bron (Edward Norton) em uma ilha particular suntuosa. Cada um dos convidados é, à sua maneira, mesquinho e egoísta, além de muito rico e influente; Claire Debella (Kathryn Hahn, estrela de WandaVision) é governadora do estado norte-americano de Connecticut, uma mulher de pulso firme e absolutamente obcecada por poder. Duke Cody (Dave Bautista, astro de Guardiões da Galáxia) é um youtuber masculinista e agressivo, que ficou famoso por seu posicionamento antifeminista.
Já Birdie Jay (Kate Hudson, Como Perder um Homem em 10 Dias) é uma ex-modelo, empresária e digital influencer que, devido à suas opiniões políticas sem fundamento e questionáveis está em declínio na carreira. Enquanto Lionel Toussaint (Leslie Odom Jr., estrela do musical Hamilton) é um gênio brilhante e ambicioso que trabalha para Miles, mas discorda de sua percepção sobre o uso da tecnologia. A peça mais enigmática desse tabuleiro é Cassandra Brand (Janelle Monaé, brilhante intérprete de Estrelas Além do Tempo) a cofundadora da empresa de Miles que foi deposta pelo próprio, com aparente sede de vingança, e ela é, na visão de todos os outros, a mais perigosa.
(Novos suspeitos para um novo crime em ‘Glass Onion’. Foto: Divulgação/Netflix)
Mesmo com uma pequena amostra do que cada personagem é, percebe-se a assertividade do roteiro em relação ao que ele quer criticar: o egoísmo das elites, os pseudoespecialistas que se dizem influenciadores digitais e a obsessão por poder. O movimento narrativo é como o de uma pá desenterrando gradativamente cada aspecto das personas envolvidas na visita a luxuosa ilha, manobra que é simplesmente deliciosa. Com muita coragem, Rian Johnson explora cada personagem e possibilidade de roteiro, conduzindo-os com mordacidade e paciência a uma reviravolta de cair o queixo.
Para além disso, o diretor e roteirista não só consegue fincar a franquia em um lugar promissor no cinema hollywoodiano, como também consolida Benoit Blanc como alguém maior que os próprios casos que resolve. Assim, o que poderia ser apenas um repeteco se torna algo muito melhor e mais provocante: uma promessa; a de ver até que ponto as próximas tramas e o singular detetive da franquia conseguem superar expectativas e garantir seu lugar ao sol no cinema contemporâneo. No mais ‘Glass Onion – Um Mistério Knives Out’ consegue a façanha de ser ainda mais divertido que o primeiro filme e, naturalmente, muito mais ácido e instigante. A pergunta que fica depois de assistir a um mistério tão envolvente quanto esse é, no fim das contas: Qual vai ser a próxima surpresa?
Esse brilhante suspense, misturado com um pouco de comédia, prende do início ao fim e não é por acaso que, tendo estreado no dia 23 de Dezembro, já está entre as maiores estreias da Netflix, com a surpreendente marca de mais de 80 milhões de horas assistidas.
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Imagem: Divulgação/Netflix