Crítica: A Gangue (The Tribe/Plemya)

Nesta semana, vou abordar minha coluna aqui no Portal do Andreoli de maneira um pouquinho diferente. Geralmente, costumo falar sobre os lançamentos da semana ou do mês, mas hoje vou falar de uma sensacional produção exibida na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2014. Bem pouco conhecida do grande público, trata-se de uma produção que merece ser descoberta.

Como cinéfilo, seria inaceitável que eu não assistisse este A Gangue (The Tribe/Plemya, Ucrânia, 2014), dada a original (e acredito eu), inédita maneira genial e ousada com que o filme foi concebido: A produção é toda interpretada através da linguagem de sinais, sem tradução, narração ou legenda.

E para quem pensa que esta estrutura tira de alguma maneira o impacto do filme, está redondamente enganado. Sem dúvida a produção mais forte e pungente exibida na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, A Gangue é – desculpem a linguagem chula – uma tremenda porrada na cara do espectador.

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Mas para falar de A Gangue, é preciso primeiro entender um pouco o delicado (para usar um termo modesto), momento atual da Ucrânia, país de origem da produção.

Com o fim da Guerra Fria, a Ucrânia se tornou um país dividido. Uma metade ocidentalizada e outra ainda com fortes ligações com a Rússia (cerca de 20% da população ucraniana é russa, étnica e culturalmente falando).
Recentemente, após o rompimento de um acordo entre a Ucrânia e a União Europeia, que fundamentalizou ainda mais as relações do país com a Rússia, boa parte da população do país foi às ruas para protestar contra a decisão, e inúmeros conflitos persistem no país até os dias de hoje.

Hoje, a população do país dividida entre pró-russos e pró-UE, tenta sobreviver à ataques de ambos os lados do conflito, em um território empobrecido e brutalizado pelo confronto e pela grave crise econômica europeia, que se reflete com mais força nos países mais pobres da Europa, como é o caso da Ucrânia.

É neste contexto de ruptura que A Gangue insere seu protagonista, Sergey (Grigoriy Fesenko), um jovem surdo e mudo que chega à um internato especializado em menores com a mesma deficiência do protagonista. No entanto, bastam poucos instantes para Sergey perceber que o local abriga uma verdadeira rede criminosa, aparentemente administrada por um grupo formado pelos próprios menores, que envolve roubo, contrabando, violência e exploração sexual.

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A Gangue escrutina e escancara impiedosamente o momento catastrófico enfrentado pela Ucrânia, e o papel desesperador dos jovens da nação, cuja existência sem propósito passa a impressão de um impiedoso abandono por parte dos governantes da nação. O título original do filme, inclusive – The Tribe (A Tribo, na tradução) – se encaixa com perfeição ao contexto da produção, já que os jovens protagonistas do filme não pertencem a lugar nenhum neste desolador cenário em que se ambienta a trama de A Gangue. O único lugar a que pertencem são entre os seus, entre a sua “tribo”.

Absurdamente bem dirigida pelo também ucraniano Miroslav Slaboshpitsky, a produção demonstra um pioneirismo inédito no cinema, dada a sua concepção e execução nada habitual. É admirável o esforço de Miroslav e de seu desconhecido e jovem elenco, que conseguem segurar um filme de mais duas horas de duração, e onde 90% do público (que, assim como eu, não compreende a linguagem de sinais), não entende absolutamente nada do que está sendo “dito”, e que consegue seguir apenas o fio condutor da narrativa. Slaboshpitsky e seu elenco também se engajaram de corpo e alma em sequências fortíssimas, repletas de violência desmedida e sexo quase explícito. A sequência em que uma das personagens faz um aborto em uma clínica clandestina, é nauseante, e fez com que várias pessoas abandonassem a sala de cinema onde assisti ao filme.

É claro que tal estrutura inusitada da concepção do filme em certos momentos cobra seu preço. Algumas sequências, justamente por não existir este entendimento por parte do público, acabam sendo cansativamente estáticas demais, e uma sequência em particular, na qual fica explícito o conluio dos administradores do internato com as atividades ilícitas que acontecem lá dentro, acaba soando exageradamente caricata. Mas nada que chegue nem perto de diminuir o impacto do filme.

A Gangue é uma experiência crua. Um filme brutal como poucos que já vi. Uma produção que faz a inegável conexão entre a explícita deficiência na comunicação entre os governantes de um país jogado às traças, com os membros de sua sofrida nação. Aos garotos surdo-mudos do filme, o que sobra é o resto do resto. Infelizmente, não é só o amor que não precisa de linguagem para ser demonstrado. A violência também não.

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