Crítica: Corra! (Get Out)

Você já viu este filme: Rapaz negro se apaixona por garota branca e de família rica, e ao ser convidado para conhecer a família da moça, enfrenta o difícil obstáculo do preconceito racial. A questão é que não. Você NÃO viu este filme. O thriller extremamente original Corra! (Get OutEUA, 2017), é um tenso e divertido suspense, carregado de um incrivelmente relevante subtexto racial, que transforma o filme em uma inacreditável alegoria para se falar do preconceito, mesmo quando este vem disfarçado de uma boa sessão-pipoca.

O inusitado já vem desde a produção e concepção do filme. Corra! é escrito e dirigido por Jordan Peele, um ator e roteirista cômico que ao lado do amigo Keegan-Michael Key, surgiu no programa humorístico MadTV, e desde então, tem atuado e escrito filmes e sketches para diversos programas de TV, especialmente o show Key and Peele, que foi ao ar na TV americana em 2015, e a comédia mediana Keanu: Cadê Meu Gato?! (Keanu, 2016). Com exceção de uma participação como ator na primeira temporada da excelente série Fargo, em que também atuou ao lado do amigo Key, Peele nunca trafegou por áreas mais “sérias” do cinema e da TV. O que faz com que este Corra!, sua estreia na direção, seja ainda mais improvável, tamanha a profundidade da trama da produção, e do alcance do poderoso e atrevido punch que o filme carrega.

Corra! traz o excelente Daniel Kaluuya (que já havia dado um show em sua interpretação num dos melhores episódios da série sci-fi Black Mirror, o contestador “Fifteen Million Merits”), no papel de Chris, um jovem e talentoso fotógrafo negro que é apaixonado por sua bela namorada branca, Rose (Allison Williams, da série Girls). Tudo vai muito bem no relacionamento do casal, até que Rose propõe à Chris uma viagem à propriedade de sua abastada e tradicional família, para as comemorações de uma data especial. Chris à princípio reluta, justamente pelo receio de ser alvo de preconceito por parte da família de sua namorada, mas acaba cedendo aos apelos da amada. Contudo, basta chegarem ao local, para Chris perceber que ele tinha razão. Já que algo muito, MUITO estranho está acontecendo por ali.

Falar mais sobre a trama e as reviravoltas de Corra!, pode estragar um pouco a excelente sensação de montanha-russa que a produção exerce sobre o espectador. Peele brinda o público com um filme inteligente, estiloso e de suspense de trincar os dentes, valorizado por seu excelente intérprete protagonista, e pelas presenças soturnas e certeiras de Catherine Keener (Quero Ser John Malkovich, 1998) e Bradley Whitford (Um Mundo Perfeito, 1993), que interpretam os pais de Rose. A dinâmica da estranha relação que brota entre Chris e seus “futuros sogros” conduz a narrativa da produção à passos firmes, onde prima o subtexto ousado e original de Peele.

O diretor e roteirista ao mesmo tempo destila um humor inspirado e realmente engraçado em diversas passagens da produção, especialmente graças à presença de LilRel Howery, outro ator cômico oriundo da TV americana. Aos poucos, seu personagem deixa de ser apenas o alívio cômico da produção, e praticamente rouba a cena no terço final do filme, dando à produção uma divertida mistura de suspense e humor, onde só resta ao público sorrir de maneira nervosa com o ótimo e tenso andamento da produção.

Mas é mesmo quando encarna o papel de alegoria para se falar da terrível vertente do racismo, que Jordan Peele e seu Corra! transcendem gêneros, e a produção acaba por discorrer sobre o tema de maneira tão esperta quanto genial. Alguns puristas podem até vir a reclamar do terceiro ato do filme, que definitivamente abandona o bom senso e “viaja na maionese”. Contudo, é nítida a sensata escolha de Peele em seguir nesta direção, já que quando finalmente os segredos da produção são revelados, Corra! passa a fazer sentido da maneira mais inesperada possível, escancarando uma tendência da sociedade atual, que já há alguns anos vem apresentando uma espécie de inversão no pêndulo racial, onde os negros não mais querem os confortos de ser branco, e os brancos, bem, os brancos…

2017 definitivamente marca o ano do retorno dos bons thrillers. Depois do excelente Fragmentado (Split, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), dirigido por um inspirado M. Night Shyamalan, este Corra! confirma o bom momento do gênero no cinema, evidenciando também a ousadia e coragem da Universal Pictures, que banca e distribui ambos os títulos. Inclusive, Corra! talvez seja o projeto mais arriscado que um grande estúdio possa ter se aventurado a bancar em muito tempo, dada a natureza incomum da produção. Contudo, Peele e seu filme falam do racismo de maneira tão brilhante, corajosa e inusitadamente divertida, que seria uma pena ninguém se arriscar a tirá-lo do papel.

Corra! estreia nos cinemas brasileiros no dia 18 de Maio.

https://www.youtube.com/watch?v=A2JbO9lnVLE

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