Sete meses depois que Shannan Gilbert desapareceu, um corpo foi encontrado em um trecho isolado de uma estrada arborizada da cidade de Long Island. Não era o corpo de Shannan e tampouco o próximo corpo que viria a ser encontrado. E nem o próximo, e nem mesmo o que viria a ser encontrado depois dele; ao todo, dez corpos foram encontrados no mesmo trecho da Ocean Parkway em Long Island, até que o cadáver de Shannan fosse finalmente encontrado.
Até então, sua mãe, Mari (a excepcional Amy Ryan, de Medo da Verdade e Birdman), já tinha passado meses batendo de porta em porta, implorando para a polícia investigar o caso, e unindo-se a outras mulheres que enfrentavam a mesma situação. O caso deu origem a um dos mais misteriosos serial killers da história americana. Lost Girls: Os Crimes de Long Island (Lost Girls, EUA, 2020), é o tipo de drama real que parecia a escolha perfeita para a documentarista duas vezes indicada ao Oscar, Liz Garbus (Bobby Fischer contra o Mundo, Com Amor, Marilyn), adaptar o material em mais um documentário. Garbus, entretanto, decidiu adaptar o material em um incômodo drama, e graças à sua motivação em contar histórias sobre mulheres notáveis e crimes hediondos, este Lost Girls, seu primeiro longa-metragem, alcança um sólido resultado.
Adaptado do livro de Robert Kolker, pelo roteirista Michael Werwie (do recente Ted Bundy: A Irressistível Face do Mal, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), Lost Girls é o tipo de filme que na mão de outro cineasta, provavelmente seria apenas mais uma obra de suspense dedicada a descobrir a verdade. A questão é que a dura realidade mostra que na verdade… a verdade não existe (pelo menos ainda não). O livro de Kolker apresentou uma variedade de possibilidades para a identidade do serial killer de Long Island, que acredita-se, pode ter matado entre 16 a 20 mulheres (a grande maioria profissionais do sexo) em um espaço de duas décadas. Contudo, as acusações nunca foram formalizadas contra qualquer um destes suspeitos. O filme de Garbus eventualmente centra suas atenções em um único suspeito, ainda que trabalhe a narrativa de maneira semelhante ao livro de Kolker.
A protagonista Amy Ryan, entretanto, está livre das amarras narrativas, e sua presença coloca fogo na tela em uma de suas mais ferozes e furiosas performances da carreira. No filme, assim como na vida, foi Mari Gilbert quem recusou a ceder para policiais frios e desinteressados, que refutavam seus pedidos de ajuda para localizar sua filha desaparecida. Mari acabou por se tornar a mais determinada representante não só de Shannan, mas também de várias outras mulheres que cruzaram o caminho do assassino e nunca mais voltaram.
O filme de Garbus defende o argumento de que as autoridades ignoraram Mari e outras mães, irmãs e amigas, todas desesperadas para encontrar seus entes queridos, devido ao fato de que as vítimas eram em sua grande maioria acompanhantes e prostitutas. A maioria desapareceu enquanto trabalhava em uma região nobre dos subúrbios de Long Island, um território onde os ricos e influentes controlam e de onde provavelmente seria o assassino. Existe inclusive a possibilidade de que pessoas da localidade teriam acobertado as ações do serial killer, ignorando completamente o apelo daqueles que se importavam com suas vítimas.
Sob o gigantesco talento de Ryan, Mari é uma mulher acostumada a ser tratada como nada. Uma pobre mãe solteira que cometeu sua cota de erros mas que ainda possui um profundo senso do que é certo e do que é errado. Quando Shannan desaparece, Mari e suas outras filhas (interpretadas pelas ascendentes Thomasin McKenzie e Oona Laurence), se recusam a ignorar seus instintos de que algo está muito errado. A incessante busca por justiça de Mari e suas filhas as leva até a órbita de outras mulheres na mesma situação; pessoas em busca de uma resolução para os desaparecimentos, mesmo que a conclusão provavelmente venha a ser a mais dolorosa possível.
A fúria justificada de Ryan é difícil de ser igualada, mas McKenzie em particular funciona como um perfeito contraponto para a personagem. A introdução de outras personagens coadjuvantes ajuda a aumentar a força das performances centrais, como por exemplo a atriz Lola Kirke (Garota Exemplar), que interpreta uma mulher engajada em encontrar sua irmã desaparecida, mas que ao mesmo tempo se encontra horrorizada por constatar o quão facilmente poderia ter sido ela própria a pessoa levada pelo assassino. Sua performance é incendiária, repleta de fúria e também medo latente. É sem dúvida um grande e complexo papel, ao qual Kirke agrega também uma profunda tristeza.
O próprio Robert Kolker comparou seu livro à experiência de escrever sobre a única viagem do Titanic, no sentido de que todo mundo já sabe como a história acaba, e que o truque é fazer as pessoas se importarem com como tudo aconteceu até lá. Com seu filme, Garbus é bem sucedida em manter esse raciocínio e também a triste tensão que uma história desta natureza carrega consigo. Ainda que hajam alguns sucessos para Mari e sua irmandade ao longo do caminho, o tipo de “vitória” que envolve encontrar um corpo ou identificar um crânio, o drama de Garbus nunca se rende a emoções ou estruturas convencionais. As sequências finais ficam engasgadas no espectador, a verdade da história em nenhum momento oferece algum tipo de catarse, e o filme se desenrola lentamente durante alguns de seus momentos mais carregados.
Houveram algumas movimentações recentes no caso. Curiosamente, novas evidências foram anunciadas em uma coletiva de imprensa exatamente no mesmo dia em que a Netflix lançou o primeiro trailer da produção, anos depois de qualquer novidade no caso. Os produtores ficaram um tanto receosos que tais novas revelações pudessem vir a influenciar a conclusão do filme, contudo, é impossível lamentar a possibilidade, independente do que surja ou não no caso, de que Lost Girls: Os Crimes de Long Island pode vir a inspirar as pessoas a saber mais sobre as mulheres que foram perdidas. Tanto as mulheres que ainda lutam por elas, como aquelas que desesperadamente merecem ser encontradas.
Lost Girls: Os Crimes de Long Island estreia no catálogo da Netflix no dia 13 de Março.