No dia 12 de março de 2023, a cerimônia da edição do Oscar, maior premiação do mundo do cinema, rendeu muitos momentos históricos e até mesmo comoventes.
O discurso emocionado do ator chino-americano Ke Huy Quan ao vencer a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante por “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, o marco do retorno triunfal de Brendan Fraser aos cinemas ao vencer o prêmio de Melhor Ator por “A Baleia”, depois de anos afastado da indústria após ser agredido sexualmente por um homem influente no meio cinematográfico no ano de 2003 e, por fim, a entrega do prêmio de Melhor Atriz a Michelle Yeoh, intérprete malaia-chinesa de sessenta anos de idade que, além de desbancar o etarismo hollywoodiano aprendendo uma série de artes marciais para seu papel, tornou-se a primeira mulher asiática a ganhar um Oscar.
Ainda que todos esses momentos tenham sido, de fato, tocantes, a internet ficou em polvorosa com a escolha que levou o título de Melhor Filme, prêmio mais importante da indústria cinematográfica, naquela noite.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um filme extremamente divisivo, para amar ou odiar; de um lado, a maioria dos objetores descrevem, a narrativa como caótica, enfadonha, extravagante demais e até mesmo batida, ainda que disfarçada com um véu de originalidade, do outro, seus defensores o consideram hilário, apaixonado e apaixonante, uma lição muito genuína sobre o amor.
Mas qual dessas versões corresponde à realidade? Os inúmeros prêmios adquiridos pelo filme e equipe teriam sido um exagero ou realmente foram acertados?
Veja bem, o papel de uma crítica cinematográfica não é classificar um filme como bom ou ruim, e sim avaliar, com base em sua percepção e estudos sobre linguagem e história do cinema, quais pontos negativos e positivos aquela obra apresenta.
Por isso, para entender o motivo de tantos prêmios, é necessário, primeiramente, mergulhar na experiência proposta por esse longa-metragem.
Um verdadeiro Multiverso da Loucura
A história segue Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa que vive nos Estados Unidos e reconstruiu sua vida do zero montando uma pequena lavanderia.
Estressada com o comportamento extremamente dócil e paciente de seu marido, Waymond (Ke Huy Quan), que em sua visão quase nunca se preocupa o suficiente com o amontoado de contas que precisam pagar, e com afilha, Joy (Stephanie Hsu), que está mantém um relacionamento com uma moça e luta para a mãe reconheça e aceite sua homossexualidade.
Evelyn não tem nenhum atributo de uma heroínaconvencional; é reclamona, impaciente e por vezes até grosseira, mesmo assim, depois de uma tentativa de assassinato, ela descobre que uma série de inimigos estão caçando-a, já que ela pode ser a única capaz de impedir um enorme colapso entre os multiversos.
De antemão, um ponto relevante a se destacar é a escolha da linguagem cinematográfica nessa narrativa, que é o primeiro ponto a separar os espectadores entre aqueles que amam e os que odeiam.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem uma linguagem e estética voltada para agradar principalmente o público jovem, com referências a memes da internet e elementos característicos que remetem à descontração, como confetes e olhos esbugalhados, que criam um verdadeiro ‘multiverso da loucura’.
Esses elementos funcionam para trazer o ar de comicidade que os Daniels, premiados também na categoria de Melhor Direção do Oscar 2023, pretendiam, mas afastam a possibilidade de muitos dos espectadores se conectarem com o que estão vendo. Há inclusive uma razão neurológica para que isso aconteça, o bombardeio de informações visuais e interativas pode ter dois resultados diferentes, variando de pessoa para pessoa: pode instigar a conexão, ou seja, quem assiste se engaja a tentar decifrar aquele universo, ou simplesmente pode causar fadiga mental.
Isso explica o fato de a maioria das reclamações com relação ao filme estar relacionada à sensação de cansaço e/ou desconexão.
Mesmo que a estética escolhida para representar a história seja extremamente criativa e coerente com a temática do multiverso, não é abrangente ao ponto de funcionar com qualquer público, mas esse é só um dos pontos a criar essa dicotomia entre conexão e desconexão de público.
O segundo ponto relevante tem a ver com o roteiro, para além das inúmeras referências à símbolos da cultura pop e objetos que fazem parte da vivência cotidiana dos jovens, a construção das personagens, ainda que cheia de nuances – o que definitivamente é um dos fatores mais positivos dessa história – remete a discussões que só vem ganhando notoriedade nos últimos anos.
Um dos exemplos mais claros disso é o plot do trauma intergeracional; Evelyn teve um pai ríspido e distante, que nunca se orgulhava de suas conquistas e a tratava com desprezo na maior parte do tempo, e por nunca ter conseguido realmente processar isso, a protagonista reproduzia essa dinâmica com o marido e a filha.
Tanto que, dentre o público jovem que se identificou com o filme, a personagem Jobu Topaki (StephaniHsu), versão vilanesca de Joy, tornou-secompletamente adorada, justamente por personificar toda a raiva e tristeza proveniente dos anos de desprezo que sofreu tentando se conectar com a mãe. Ou seja, são temáticas que fazem muito mais sentido para a geração Z, que está mais próxima de conceitos da psicologia que antes, sem a magnitude da internet, eram tabus.
Em suma, de um lado, o frenesi multiversal e a estética multicolorida, até mesmo cômica, podem até não agradar, mas o filme mergulha de cabeça num ponto que tem as maiores chances de criar conexão com seus espectadores: o pensamento e o emocional.
Apelo filosófico e emocional
Um dos fatores que torna essa história tão interessante é, também, o uso de metáforas visuais e de roteiro para traduzir sentimentos fáceis de compreender.
A própria temática central do filme, resumida no título, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” parece ser uma metáfora da realidade atual, em que a grande massa das pessoas está tão sobrecarregada pensando no passado, no futuro, em qualquer outro tempo ou universo que não o presente, que se torna incapaz de perceber a beleza do hoje.
Todo o plot do filme é baseado em percepção; enquanto a protagonista não muda a percepção que tinha sobre sua realidade, não consegue entender por que foi escolhida para salvar o multiverso e, muito menos, quais renúncias envolveriam o processo de se tornar a heroína tão esperada.
A autopercepção, inclusive, é peça fundamental dessa construção, porque é a partir dela que Evelyn se coloca na posição de tentar se tornar uma mãe melhor para sua filha.
O forte apelo filosófico, representado pela ambiguidade entre a jornada em busca de seu “eu” da mãe e a desistência do “eu” na filha; da relação da heroína atípica com o marido, cuja rispidez a impediu de enxergar que, na verdade, a gentileza de seu companheiro nunca foi uma fraqueza, e sim sua maior força…fatores que também trazem consigo a necessidade de uma carga emocional precisa que dê sentido à dramatização dessas situações.
Nesse sentido, os Daniels conseguem equilibrar muito bem a dinâmica entre racional, emocional e insanidade – esta última representada pelo próprio multiverso, que apesar de muito bem composto e trabalhado, não faz sentido.
Goste ou não do filme, fica fácil perceber o resultado dessa composição: um apelo dramático extremamente equilibrado e nuançado, que se corrobora através da complexidade das personagens naquele meio.
Muito provavelmente, a solidez dessa condução pelo emocional dos envolvidos na bagunça multiversal é a maior potência da história, que se vale de um pano de fundo caótico e complexo para falar sobre amor de forma coesa e até mesmo, tocante.
Mas seriam esses detalhes suficientes para que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo se tornasse o filme mais premiado da história? A resposta é não.
Quanto aos prêmios…
A verdade, é que cada um dos pontos mencionados nesta coluna colaborou para que esse filme se tornasse tão premiado, mas o real motivo que levou tantas academias cinematográficas/festivais a premiá-lo foi o parâmetro que tem sido adotado por elas para a escolha dos melhores filmes nos últimos tempos.
Para vencer a categoria de Melhor Filme, segundo esses parâmetros, seria necessário que o concorrente fosse, ao mesmo tempo, sucesso de público e de crítica, contendo uma premissa inovadora.
Por óbvio, apesar de não ser o filme mais original já feito, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo trabalha um tema dificílimo e, ainda, pouco explorado na cinematografia contemporânea, que é o multiverso.
Além disso, consegue fazê-lo de forma extremamente bem amarrada; mesmo que o caos narrativo seja confuso, o espectador entende cada universo e suas particularidades.
Isso não anula o fato de todos os fatores positivos elevarem o filme ao patamar que chegou, mas explica sua decolada rumo a tanto sucesso na temporada de premiações.
Fora que há muitas inovações dignas de nota além do tema do multiverso, o elenco principal é composto por uma família de asiáticos de maneira nem um pouco estereotipada.
As personagens femininas subvergem a narrativa dominante adotada sobre papéis de mulheres asiáticas normalmente, que são sempre pautados por um olhar masculinista que as reduz a sexys, submissas ou misteriosas.
Evelyn e Joy são personagens muito completas e nuançadas. Com camadas emocionais que o espectador pode deliciosamente explorar ao longo da narrativa e que se afastam do estereótipo comum sobre asiáticas no cinema.
A própria caracterização de Waymond como um homem dócil, paciente e gentil confronta a frieza e calculismo tipicamente adotados na descrição de um homem asiático.
No fim das contas, há um conjunto de fatores pelo qual Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo conseguiu decolar e se tornar o filme mais premiado da história.
Ele tem uma mensagem única sobre o amor, que trabalha com traumas e questões ainda pouco exploradas na cinematografia contemporânea, a temática multiversal funciona, é coesa e muito bem amarrada, apesar do estilo caótico; a estética multicolorida e alegre também difere do que costuma ser visto no mainstream.
Por último, mas não menos importante, para além das inovações, o elenco promove visibilidade aos atores e atrizes asiáticos no cinema, mostrando que não existe só um jeito de contar sua história.
Imagens: Reproduções do Filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”
**O conteúdo e informação publicado é responsabilidade exclusiva do colunista e não expressa necessariamente a opinião deste site.